NOS DIAS PARES, ÀS VEZES, CARUSO CANTA

CARLOS ZÜRCK CRUZ - São Cristovão, Rio de Janeiro, 1955. Professor, Pós-Graduado em Artes Plásticas, Artista Plástico e Escritor. "... sou plural, se fosse singular seria CARLO..." 2003 - premiado (1º lugar) no II CONCURSO MUNICIPAL DE CONTO - PRÊMIO PREFEITURA DE NITERÓI; 2005 - premiado (1º lugar) no III CONCURSO LITERÁRIO DA FEDERAÇÃO DAS ACADEMIAS DE LETRAS E ARTES DO RIO DE JANEIRO; 2006 - premiado (2º lugar) no XVIII CONCURSO INTERNACIONAL DE VERÃO (Edições AG).

sexta-feira, julho 20, 2007

A SOMBRA DO HOMEM QUE CAMINHA A SOMBRA

“... Existe um enigma maior na

sombra de um homem que

caminha(...) do que em todas

as religiões passadas,

presentes e futuras.”

De Chirico

Figura 1

Constituída pelo desenho

de um triângulo

, três caracóis já havia posto sobre o ponteiro dos minutos do relógio de mesa da sala de jantar. Um velho carrilhão francês, belíssimo, de marca Vedette. Observava, com a respiração suspensa, ansioso. Como o relógio de mesa de Frederico II, O Grande, quando seu pai morreu, aquele relógio também havia parado eternizando, no concretismo pontiagudo dos ponteiros, a hora do destino, o fim do seu pai. Não sabia a que atribuir tal coincidência, mas a partir desse momento esse relógio passou a ter um significado especialmente amargo para ele.

Agora ali estava, rosto colado ao mostrador, observando a ação dos caracóis que com absoluta certeza, haviam de salvá-lo de, um dia qualquer de primavera, acreditar que o mundo mentia-lhe.

Tanto a sala de jantar, como de resto toda a casa, vivia durante o dia eterna penumbra, à noite escuridão total. Nenhuma luz era acesa.

Os móveis – mesa, cadeiras, arca, réplicas do estilo bolachas – em jacarandá, todos meticulosamente polidos com óleo de peroba, possuíam estranha cor de couro envelhecido e as cadeiras eram mesmo forradas com esse material, preso a estrutura de madeira com enormes tachas douradas -,escuro, que combinado ao verniz, imprimia veementemente o aspecto sombrio que, como nevoeiro, flutuava à sala de jantar. Percebia-se fisicamente isto ao entrar lá.

A casa, que se situava à Rua São Januário, era em estilo neoclássico, pé-direito com quatro metros, três portas balcão com vidros trabalhados a jato-de-areia, motivos florais. Escada lateral e porão. O piso da sala, de tábua corrida, canela, rangia exalando seu odor adocicado, tornando ainda mais trágico o ambiente, quando o avô saía do seu quarto para o banho de sol diário, com sua harmônica de boca e um cobertor das Casas Pernambucanas, às costas. A face ossuda, escalavrada pelo impiedoso arado do tempo. Bigode hirsuto espetado farto e branco, barba por fazer, olhos cavados. Aquele velho italiano, combatente da Primeira Grande Guerra que ficara cego pela absorção do gás mostarda, nunca esbarrava nos móveis ou derrubava um bibelô, e eram muitos, tampouco necessitava de luzes acesas. Suas mãos tateando, inventavam e reinventavam seu universo iluminando-lhe o caminho que os olhos vazios de cego não adivinhavam.

Passava todas as manhãs sentado em um banquinho pintado de branco, ao sol, de frente para a parede, que não via, soprando marchas militares em sua harmônica e fazendo a marcação com o pé direito que batia com inusitado vigor contra o chão de terra do quintal dos fundos.

Às vezes, parando de tocar, improvisava violento e confuso discurso, em italiano, em que se percebia, não sem alguma dificuldade, descrever as últimas cenas que seus olhos haviam registrado: cenas de guerra. Trincheiras; lama; cavalos; sangue e amigos mortos. Sobrevivera, mas marcado irremediavelmente pela miséria e pela morte que cada dia de cego se encarregava de calcar-lhe na alma. A morte inconclusa que silenciosamente, já há mais de cinqüenta anos, o invadira pelos olhos. Outras vezes, em silêncio, chorava.

Figura 2

Constituída pelo desenho de

um losango.

,desde que o pai morrera havia assumido o seu lugar na relojoaria na busca diária do sustento, seu e do avô. Nunca pensara em lidar com essa profissão, mas outra coisa não sabia fazer. Assumiu a loja como quem assume um crime íntimo. Ainda assim, por mais paradoxal que isto possa parecer, amava os relógios. A beleza sóbria, minimalista de um relógio de sol, a magia de uma ampulheta. “Você já viu uma clepsidra?” Sempre que fazia a defesa apaixonada de sua ocupação, iniciava com esta pergunta, mas, naturalmente, não esperava respostas, nem positiva nem negativa. Simplesmente não dava tempo para reflexões e imediatamente se punha a falar da beleza da mecânica de um clepsidra de rotação ou “relógio dell argent vivo” - na verdade como o mercúrio era conhecido no séc. XVIII: “prata viva” - também conhecido como clepsidra de Afonso X”. De um relógio de sala ou de parede, estilo Luiz XIV, séc. XV, em cuja porta Charles–André Boulle usou uma técnica de marchetaria inventada por ele em que associava carapaça de tartaruga e latão, uma jóia barroca. Os relógios de bolso de Breguet–Abraham Louis, séc. XVIII. “Semi–Sabonete”, com tampa vazada permitindo ver as horas. “Sabonete”, com mostrador totalmente coberto por uma tampa decorada. Um fanático apaixonado pelos engenhos que o levavam à destruição que ele não percebia.

Na loja foi que compreendeu profundamente o pai e sua muda angústia do tempo vivido. Ele havia acertado cada relógio da relojoaria com horas diferentes de modo que era impossível - uma vez trancado na relojoaria - saber a que horas ia o dia. Dificultando assim o aparecimento da dor fina, no lado esquerdo do peito, que o passar do tempo lhe provocava. Mas a noite inexorável, enfim, chegava e era necessário retornar a casa. Com ele, essa estratégia do pai não funcionava. Achava que com o pai também não havia dado muito certo, uma vez que a angústia havia estourado seu coração na rua, numa noite de chuva, quando retornava do trabalho.

Era sempre menos infeliz no caminho de casa ao trabalho e de volta a casa. Ao caminhar para o trabalho, principalmente ao final do inverno, sem precisar por que, sentia-se imensamente solidário com o próximo. Até dava uma ou outra esmola aos mendigos que, ao acaso, encontrasse. Quando retornava a casa, as estrelas solidárias é que lhe estendiam esmolas na forma de luz, o que estancava momentaneamente a infelicidade do dia torcido na relojoaria, - comovia-o, sobremaneira, uma pequena constelação, que Nicolas Louis de Calle descobriu em 1752 no céu austral, quando da expedição ao Cabo da Boa Esperança, que se chama relógio. Sorria consigo mesmo ao observá-la -. Sim, momentaneamente, pois no caminho de volta, inevitavelmente, passava pela loja de “animais empalhados” – cujo técnico, aborrecido, sempre corrigia: “taxidermizados, taxidermizados.” – da esquina, cuja simples proximidade exercia sobre seu organismo uma inexplicável ação perturbadora a ponto de provocar-lhe febre, erupções na pele, flatulência, um mal estar geral que não raro terminava em vômitos. Às vezes, pensava em dar a volta no quarteirão. Subindo pela Emancipação, Praça Argentina, Coronel Cabrita, Carneiro de Campos e São Januário no sentido contrário, para evitar a loja, mas isso suprimiria a visita cotidiana que fazia à loja de móveis usados, um antiquário, na verdade, que ficava ao lado desta outra e que era responsável, como as estrelas, pelos momentos menos infelizes de sua vida diária. Este dilema jamais conseguiria resolver. Na loja de móveis usados, onde sempre ficava um quarto de hora exato, lembrava da mãe que não conhecera. “Gymnopedies” de Satie era a suave e rigorosa trilha sonora de sua existência. Haviam-lhe dito, não lembrava quando, que sua mãe, que não conhecera, sempre ouvia. Ele fascinado pela história, desde pequeno talvez, tornou-se cativo da canção. Ouvia-a sem cessar, incansavelmente, horas a fio, tentando compreender a mãe que não conhecera. Beethoven não, nunca ouvia. Por glorificar o homem odiava Beethoven. Odiava também, intimamente, a mãe que dando-lhe a vida, dera-lhe também a morte, senhora de todas as contradições.

Assim consumia seus dias e sua esperança.

Figura 3

Constituída pelo desenho

de um círculo.

, dia desses, final de inverno, quando caminhava para a relojoaria a distribuir esmolas, lembrou-se da profunda alegria, confusa e estonteante, que sentia, quando criança, em encontrar um caracol sob um vaso de plantas no jardim. Apercebeu-se que necessitava dessa alegria agora. Apenas os caracóis – e somente eles – seriam capazes de libertá-lo dessa dor do tempo que também o acometera. Com os santos óleos da alegria ingênita da infância, destilados pelos caracóis luzidios, despregaria o visgo do tempo aderido a alma. Movido por essa súbita esperança retornou imediatamente a casa. Este dia não trabalhou na relojoaria, consumiu-o em busca dos pequenos moluscos que se transformaram na esperança última de não acreditar que o mundo mentia-lhe.

No banheiro, sobre a geometria glacial do chão, completamente nu, deitado, era Cristo crucificado. Textos esgarçados vinham-lhe à boca: “Eli, Eli, lamma sabacthani!” Quando criança os havia ouvido na vida, paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo irradiado todos os anos de sua infância febril, na sexta-feira santa, pela rádio Nacional. O rádio, sua generosa escola de emoções: novelas, programas de humor, as reclames, canções... Ray Charles, nada entendia, mas aquela voz cálida e cega o comovia. Os acordes líquidos escorriam-lhe dos olhos salgando-lhe a boca: “I can stop love in you”.

Chegava da escola pública em torno do meio-dia, comia alguma coisa, trancava-se no quarto e ouvia a programação do rádio até a noite. Mantivera esse hábito, quase sempre dormia com o rádio ligado, um Westinghouse à válvula que pertencera à mãe que ele não conhecera. Numa simbiose daliniana, algas do sonho e o fungo das falas dos locutores fundiam-se, o que lhe dava um prazer imenso e sensual. Por vezes acordava sorrindo no meio da madrugada com o avô aos socos na parede incomodado com o ruído do rádio ligado.

“Eli, Eli, lamma sabacthani!” E morria. Quando rapaz encenava quase que diariamente, como pernicioso vício, a morte de Cristo, como ouvira no rádio. Um amálgama de misticismo e nostalgia inchavam-lhe o peito magro, até que as lágrimas quentes escorriam viscosas invadindo-lhe os ouvidos causando incômodo torturante. Único momento em que Cristo cobria-se de um lascivo significado para ele.

Outras vezes emanava-lhe do cérebro compungido um jingle, vicioso e ridículo que cantarolava baixinho:

“A preta é muito fraca, / a branca não é certinha, / cachaça boa é Mulata. /Mulata é que é caninha.”

Braços abertos, mãos e pés juntos, trespassados pelos dolorosos cravos da imaginação recorrente. Espinhos engastados no crânio. Sentindo o frio, geométrico abstrato das pastilhas do piso, penetrar-lhe as costelas:

“Fizeram muita cachaça, / nenhuma tão gostosinha. /Mulata é a que faltava, / Mulata é a que dá pé, / bebe velho, bebe moço, / só não bebe quem não quer”.

“Aguardente Mulata um produto Socácia”.

Desde sempre era-lhe difícil sair da personagem e retornar a própria carne nada heróica, nada santificada, nada sagrada, sem um grande sentimento de culpa. Mas, voltava imediatamente aos caracóis que funcionavam, já agora, como uma expiação desses pequenos pecados íntimos.

Figura 4

Constituída pelo desenho de

uma garatuja.

, caracóis, centenas deles, percorriam toda a casa arando em prata as paredes, abrindo atalhos de vidro sobre os móveis, criando mosaicos líquidos sobre o piso de tábua corrida. Folhas de alfaces por todos os lados, para que se alimentassem. Mas o verme do tempo, silencioso, consumia-o ainda assim, e de tal forma que só os moluscos sedavam aquela dor na alma. Mas como uma terrível mandala, em crescendo a dor, ele já não fazia outra coisa senão procurar caracóis encarcerá-los e cuidar para que não perecessem. O avô, alheio a tudo, transformava-se numa deidade cega e inconsciente, para os caracóis, quando saía do quarto para o banho de sol, provocando uma hecatombe entre eles, pisoteando-os inocente. Às apalpadelas ia determinando, implacável, o destino dos caracóis.

Não trabalhava mais na relojoaria, passavam fome.

O tempo inexorável, tecendo sua teia de segundos, consumira-lhe toda esperança. O mundo mentira-lhe. Com um profundo suspiro, abandonou os caracóis sobre o ponteiro dos minutos.

Penteou, com lento cuidado e precisão, que a profissão lhe havia emprestado, os cabelos fartos, lisos e muito negros e deitou-se. Arrumou a camisa sob as costas. Com alguma dificuldade e as duas mãos, encostou o cano da arma no peito, um pouco à esquerda – enfim as aulas de Biologia, do Professor Herculano, no Ginásio, servir-lhe-iam para alguma coisa – e com o polegar direito acionou o gatilho.

“Sobrevivi!” Foi o que lhe veio à mente surpresa. Pressentiu um calor agradável e viscoso sobre o peito. Visgo de jaqueira para pegar passarinho. Amendoeiras vermelhas como incêndios. Silencioso clarão, violeta profundo, invadiu-lhe os olhos e todo o quarto. Nada ouvia, apenas o grandioso silêncio violeta.

Pensou no avô, no quarto ao lado e sua cegueira. “Seria violeta a cegueira?”

Sono. Um sono absurdo pesou-lhe sobre as pálpebras, como quando, já tarde da noite, tentava ler algum livro sobre pintura. “Não Van Gogh.” Odiava sua mãe e Beethoven, mas odiava igualmente Van Gogh, sua luz crua, suas estrelas, seus pássaros.

Sobressalta-se, um sentimento, como um medo distante, perpassa-lhe o coração arruinado. Sentia-se livre de sua infelicidade, mas esse medo ligeiro? “Sou um covarde agora, mas ninguém o saberá.” Pensou como Julien – “Le rouge et le noir”- “Não, não se sentia um personagem, muito menos de Stendhal.” Enquanto ainda pensava estas coisas percebeu que uma música distante, despojada, impressionista e mística com seus acordes cálidos e moles invadia o quarto. “Gymnopedie, Satie!” Reconheceu com o que podia considerar vaga alegria. Ouvia perfeitamente os acordes agora. “Que mãos maternais urdiam essa teia de notas amarelas, sem peso, que, flutuando, combinavam perfeitamente com o violeta, agora intenso, que banhava todo o quarto?”

Prenhe daquele violeta e daquela canção, que projetavam-lhe, com toda certeza, seu próprio fim, pensava com lascívia, como um personagem de Camus: “Para que esse violeta? Por que essa canção?”

Sem sonhos, sem estrelas e sem pássaros, adormeceu.

* * *

Vê: um palmo são os dias que me deste,

minha duração é um nada perante a ti;

todo homem que se levanta é apenas

um sopro.

Apenas uma sombra o homem que caminha,

apenas um sopro as riquezas que amontoa,

e ele não sabe quem vai recolhê-las.”

Salmos 39:5,6

1 Comments:

Blogger Bianca Feijó said...

Olá professor!

Passando aqui para agradecer os comentários no site do André e aproveitei para ler seus textos!

Ufá, que por sinal não é pouca coisa..rsrrs...mas vale a pena, sua escrita é maravilhosa.

Beijos!

5:39 PM  

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