NOS DIAS PARES, ÀS VEZES, CARUSO CANTA

CARLOS ZÜRCK CRUZ - São Cristovão, Rio de Janeiro, 1955. Professor, Pós-Graduado em Artes Plásticas, Artista Plástico e Escritor. "... sou plural, se fosse singular seria CARLO..." 2003 - premiado (1º lugar) no II CONCURSO MUNICIPAL DE CONTO - PRÊMIO PREFEITURA DE NITERÓI; 2005 - premiado (1º lugar) no III CONCURSO LITERÁRIO DA FEDERAÇÃO DAS ACADEMIAS DE LETRAS E ARTES DO RIO DE JANEIRO; 2006 - premiado (2º lugar) no XVIII CONCURSO INTERNACIONAL DE VERÃO (Edições AG).

quarta-feira, julho 18, 2007

O MENINO QUE DESENHOU UM GATO

Ao meu avô Antônio D’ Almeida

“Pois há um evento conseqüente com respeito aos filhos da humanidade e um evento conseqüente com respeito ao animal, e para eles, o mesmo evento conseqüente. Como morre um, assim morre o outro, e todos eles têm apenas um só espírito, de modo que não há superioridade do homem sobre o animal, pois tudo é vaidade.”

(Eclesiastes 3:19)

, é verdade! Ali na Noronha Torrezão, no Fonseca, uma casinha caiada, simpática e modesta, janelas azul-real e cortinas de renda branca. Que fora construída num terreno em aclive. Podia-se alcançá-la por entradas: uma principal, um portão lateral, de ferro fundido e desenho gracioso que ao sol oblíquo das manhãs desenhava garatujas sobre a pequena escada de pedra que dava acesso à casa. A secundária, pela loja que havia na parte de baixo da casa, uma porta do lado esquerdo que dava para a mesma pequena escada de pedra. O teto da loja era na verdade a varanda da casa, um pátio descoberto que terminava numa balaustrada baixa, obviamente um território terminantemente proibido à crianças. A loja era um empório urbano, um misto de secos e molhados; armarinho; quitanda e botequim. Lá se encontrava com facilidade, de linha para costura a presunto cozido sem osso; de botões forrados a cachaças de todos os tipos (aí incluindo a Sputinik) e preços; de cabos de enxada a ervilhas secas, que eram pesadas com corrimão; de chiclete de bola Ping-pong a figurinhas de jogadores de futebol; de carne de charque a picolé de maracujá; de broa de milho a jogo de futebol de botão de galalite; de manteiga a quilo a agulhas de crochê; de paio em conserva na banha a disco de 78 RPM do Jackson do Pandeiro, do Vassourinha com regional de Benedito Lacerda, Silvio Caldas com Fon-Fon e sua orquestra. De bala Toffee a gelo em barras; de cerveja branca achampanhada a bala Boneca; de Mineirinho a mariola Lula; de anzóis a fruta-do-conde. De abacates que amadureciam no silêncio verde de Ferreira Gullar a gibis do Spirit, Mutt e Jeff ou Príncipe Valente; de sardinhas portuguesas fritas, douradas no fubá, a querosene. Porque, às vezes, faltava energia elétrica e era comum se usar querosene nos candeeiros e nas geladeiras. Às vezes, faltava água também, e isso eras uma maravilha, por mais parodoxal que possa parecer a princípio, porque havia uma miraculosa fonte no morro dos fundos de casa onde a água corria com rebrilhante sorriso, suavemente, entre as pedras e o cheiro adocicado e forte da vegetação próxima.

E lá ia ele vestido de poeta, no seu terninho azul, de gravata borboleta e mangas curtas. Sempre acompanhava a avô que carregava um inusitado balde artesanal feito de uma lata grande de gordura de coco Carioca, cuja empunhadura era um pedaço de cabo de vassoura atravessado por dentro e fixado com pregos nas duas faces opostas.

A loja era uma enriquecedora e inesgotável fonte de deleite para todos os sentidos, e o menino do terninho de poeta pressentia isso, além de um curso completo de sociologia. Todos os tipos humanos femininos, masculinos e outros nem tanto nem tanto, passavam diariamente pela venda. Na dificuldade de caracterizar com precisão o tipo de comércio que ali se exercia, os freqüentadores chamavam assim a loja : “a venda”.

Alguns deixavam-se ficar até mais tarde, apreciando uma sardinha frita ou uma cachaça honesta. Na maioria dos casos as duas coisas. Olhares perdidos na paisagem do Nilton Bravo (pai), pintada na parte superior da parede do lado esquerdo, onde se encontrava a tal porta que fazia a comunicação interna com a pequena escada de pedra, abençoados por Santa Terezinha que encimava as prateleiras, dentro de um caixote de madeira e vidro, iluminada por uma luzinha vermelha eternamente acesa e observados pelo Getúlio, olhar e sorriso congelados nos cristais de haleto de prata do retrato oval colorido à mão, na parede lateral direita, óbvio: o sorriso do velhinho faz a gente trabalhar.

A trilha sonora das tardes vinha através de Boleros e mais boleros, programa do José Duba, no velho rádio valvulado, no qual desfilavam todas as vozes empostadas desse melancólico gênero musical: Lucho Gattica, Bienvenido Granda, José Echeves Merria, Pedro Vargas , etc, que enchia os cachaceiros contumazes de nobres motivos, alguns nem tão nobres assim, para encher a caveira de alpiste, na terminologia da época.

Encher a caveira de alpiste, tira-gosto, cachaça pro santo, saideira, encontrávamo-nos no território dos rituais.

Às tantas, programa findo, brotava de mansinho, da boca de um deles, um samba:

Atiras-te uma pedra no peito de quem

Só te fez tanto bem. E quebras-te um telhado,

Perdes-te um abrigo, feriste um amigo.

Outro puxava o ritmo na caixa de fósforos.

Conseguiste magoar, quem das mágoas te livrou

Atiras-te uma pedra com as mãos

Que esta boca tantas vezes beijou.

O restante acompanhava com um sorriso úmido de satisfação nostálgica, olhar saudoso e um manear de cabeça.

Quebras-te o telhado que nas noites de frio

Te servia de abrigo. Perdes-te o amigo

Que os teus erros não viu e o teu pranto enxugo

Não sei porque, quase sempre, fora, principiava uma chuva fininha, agradável como um chocalho empunhado por Deus, Também comovido pela letra triste do samba:

Mas acima de tudo atiras-te uma pedra

Turvando esta água, esta água que um dia

Por estranha ironia tua sede matou.

Até que a ordem muda do tio, o pegar o trilho de ferro central para fechar as portas de aço, encerrava a cantoria. Mas tinha mais samba no Acadêmicos do Cubango durante toda a noite. Mas lá era impróprio para menores.

Nas manhãs de Domingo, ida a respeitosa igrejinha, cujo pároco, como um médico de almas da família, freqüentava-a vez por outra. Motivo de orgulho para todos. Em sua visita sempre se fazia acompanhar, para alegria do menino em seu terninho de poeta, de uma lata de biscoitos sortidos Aymoré que comprava na loja antes de subir.

Viajar a esse paraíso era uma experiência, como hoje se diria, mística. Mas o mundo não se reduz a uma experiência misteriosa, é muito mais perigoso.

Todos os substantivos de Gálatas 5: 22, 23 eram propostos pelo ocaso. O sol se pondo metamorfoseava a Baía da Guanabara, como no delírio lusitano, num cartático rio que passou em minha vida e meu coração se deixou levar. De nos privar do fôlego e provocar lágrimas copiosas, como poderia ter dito um locutor esportivo.

Mas não ficava aí, repentinamente a avó lhe sussurrava, como se o falar normal comprometesse a serenidade da cena : “Vês os golfinhos?” e continuava a perguntar-lhe erguendo as sobrancelhas. Como que orgulhosos do apoteótico entardecer, golfinhos saltavam das águas em dourados e graciosos arcos, numa coreografia desenhada a compasso, às dezenas. Na barca, ê Cantareira, um silêncio reverente.

Emoções são coisas muito perigosas. Emoções matam. Era demasiadamente estupendo. Sua alma que não era pequena, transbordava de tanta beleza. Beleza que não entendia e se punha a chorar. Tudo naquela realidade possuía um sentimento póstumo que o fragilizava. Chorava, chorava, chorava até adormecer no reconfortante colo da avó. Aí, como num conto de fadas, ou num sonho, o que vem a ser uma redundância, já estava na loja, ou venda, como queira, com seu picolé de maracujá pingando no terninho de poeta, coisa que punha a mãe fora de si. A avó não ligava. A vida tinha então gosto perfumado de picolé de maracujá.

Com todo carinho que crianças e plantas necessitam para crescerem normais, era cultivado no morro dos fundos da casa, onde havia a nascente, uma floresta mágica de bertalha, espinafre e pimentões numa combinação sinfônica de cheiros e em tão grande quantidade que era base principal de todas as refeições da casa. Tudo levava pimentão: verde, vermelho ou amarelo ou os três, se fosse o caso. E pelo sim ou pelo não, ou o que isto possa significar, à noitinha sopa de bertalha com pimentões. Espinafre com ovos? Era como o frango, figura fácil nos almoços. O frango era o que hoje se convencionou chamar caipira, direto do galinheiro, no fundo do quintal, os ovos também.

Tudo isso a três quartos de hora do Rio de Janeiro: trinta minutos na barca da Cantareira e quinze no bonde Santa Rosa.

Ia me esquecendo, além de tudo aquilo, na loja também residia um grande gato rajado de amarelo, nobre no porte e no nome: Fidalgo.

O avô passava as manhãs sentado, sob o sol generoso, em frente a loja desenhando aquele gato, a grafite, sobre o papel de embrulho, incansavelmente: saltando; correndo; caminhando; brincando; dormindo, saltando novamente... Fazia uns quatro ou cinco desenhos a cada manhã. E de quinze em quinze dias, quando da sua visita , o menino recolhia os desenhos. Escolhia os melhores, claro, do ponto de vista de um menino vestido de poeta, e os levava para casa: sua coleção particular. Para se ter idéia precisa da quantidade, eram mais ou menos sessenta desenhos, a cada quinzena, uns cem por mês. E o avô fazia isso anos, compulsivamente. Os outros desenhos permaneciam guardados sob o balcão principal onde ficavam também outros papéis; revistas; jornais; que serviam para embalar produtos delicados: ovos de galinha; pata ou codorna, por exemplo.

Em alguns desenhos o avô explorava o claro/escuro com profunda sinceridade, como seria próprio a um homem desgastado pelas preocupações que a existência

suscita e agora, aposentado, se entregava a essa obsessão. Em outros, a textura do pêlo macio do gato com a extremosa paciência de um mestre ourives, que fora sua profissão por toda a vida. Ainda em outros, registrava com o poder e a magia de uma só linha e num gesto rápido, toda a sensação instantânea do movimento do animal brincando. Desenhos magníficos só comparáveis a uns estudos de gatos

feito por Da Vinci, mas que o avô apesar de muito velho não conhecia – os desenhos, não Da Vinci.

O menino do terninho de poeta, como o avô, também gostava muito de desenhar. Mas ao contrário deste, desenhava painéis abstratos geométricos – que descobriria mais tarde, de tendências neoconcretistas – na parte interna dos sacos de açúcar União ( que a mãe desfazia e guardava para ele com desvelo ) com lápis bicolor.

Uma manhã de setembro, feriado nacional, acordara cedo como todos os dias. Após o café pôs-se a desenhar como sempre fazia: rigorosos desenhos geométricos com o lápis bicolor (azul e vermelho ) no verso do saco de açúcar, mas logo nos primeiros traços uma vontade inexplicável, repentina, apoderou-se dele como uma vertigem: desejo de desenhar um gato como os do avô. Abandonou o desenho geométrico, foi à coleção de desenhos do avô que possuía e escolheu o que considerou o mais bonito – claro está que na avaliação de um menino vestido de poeta - , imediatamente pôs-se a copiá-lo a crayon.. Riscava e rabiscava, afastava-o dos olhos, observava, voltava ao desenho e repetia todos os gestos, como num transe. Por volta das onze horas, satisfeito, deu seu trabalho por concluído. Orgulhoso, mostrou a todos na casa. A comparação era inevitável: ”se não estava melhor que o do avô, estava igual”. E todos com o espanto estampado na cara: “... inacreditavelmente perfeito”. Cada pêlo claro ou escuro, cada fio do bigode. Quase que se podia tocar o gato, sentir-lhe a maciez voluptuosa de seu pêlo, a elasticidade sensual da sua musculatura. “ Magnificamente desenhado”. “Onde teria aprendido aquilo tão rapidamente ?” “ Que criança inteligente!”. Todo o espanto e perplexidade da mãe, que não cabia em si de encanto, transformou-se num longo e carinhoso beijo. O menino permaneceu calado, satisfeito consigo mesmo. Apenas uma apreensão pálida incomodava-lhe. Nada que um profundo suspiro não pudesse afastar com facilidade. Suspirou.

Uma manhã de setembro, feriado nacional , o tio, encerradas as tarefas da manhã, fechava a loja para o almoço e a merecida sesta como fazia todos os dias, inclusive domingos e feriados, dias de maior movimento. O avô eternamente sentado à porta. Não, neste dia não havia feito nenhum desenho do gato, não sentira necessidade, apenas um sentimento pleno, doce e cálido, licor de cassis , inundava seu peito. O calor do sol e a brisa, combinados, transportaram-no para um lugar qualquer da infância que não sabia precisar. Deixara-se então ficar quieto, quieto. O dia andava pelas onze horas e antes de subir a casa o que sempre fazia pela loja, o tio chamou-o com carinho. Era seu sogro, mas davam-se tão bem que a um transeunte desavisado, que não conhecesse aquela família pareceriam pai e filho. Mas o avô não lhe responderia com um murmúrio ininteligível, nem se levantaria tirando a cadeira de debaixo de si como sempre fazia, estava morto.

É verdade! Ali na Noronha Torrezão, no Fonseca.