NOS DIAS PARES, ÀS VEZES, CARUSO CANTA

CARLOS ZÜRCK CRUZ - São Cristovão, Rio de Janeiro, 1955. Professor, Pós-Graduado em Artes Plásticas, Artista Plástico e Escritor. "... sou plural, se fosse singular seria CARLO..." 2003 - premiado (1º lugar) no II CONCURSO MUNICIPAL DE CONTO - PRÊMIO PREFEITURA DE NITERÓI; 2005 - premiado (1º lugar) no III CONCURSO LITERÁRIO DA FEDERAÇÃO DAS ACADEMIAS DE LETRAS E ARTES DO RIO DE JANEIRO; 2006 - premiado (2º lugar) no XVIII CONCURSO INTERNACIONAL DE VERÃO (Edições AG).

quarta-feira, julho 18, 2007

Uma das coisas a que a avó se agarrava para justificar sua genialidade era essa pauta musical. Acho que prová-lo diferente dos outros, prová-lo um ser especial, fazia com que aquela velha senhora, de olhos cinzentos, perpetuamente chorosos, suportasse com mais coragem seu estúpido desaparecimento. Por aquele período ele havia lido o “Apanhador no campo de centeio” e havia se identificado muito com Caufield. O título da canção tinha a ver com isso, era a hipótese que sua avó defendia. Mas todos nós achávamos que, numa crise, havia furtado a canção dos cânticos de alguma dessas religiões que ele freqüentava – o que não se falou ainda aqui, mas na mesma ocasião em que passou a freqüentar a Zona, passou também, isto comprovado por toda a vizinhança, com a mesma obstinação e angústia, a freqüentar todas as religiões que se ofereciam na localidade, numa comovente e delirante necessidade de equilíbrio, como quem busca recuperar um inverno distante em que, por um quarto de hora, se esteve a janela. Fora visto, num mesmo dia recebendo a Eucaristia na Igreja de São Januário, a tarde e a noite num Terreiro de Candomblé no Morro do São Roque, onde, diziam, era alabê, numa cerimônia de Assentamento do Orixá ( vulgarmente conhecido como deitar para o Santo ). Vários domingos viram-no assistindo a um culto na Assembléia de Deus, no Campo de São Cristóvão ( onde havia uma excelente, segundo ele, banda de Soul Music, cuja cantora, uma negra excessivamente gorda, cantava Gospel com a elegância de uma divindade barroca, o que para ele era a “comprovação definitiva da existência de Deus”, disse mais de uma vez) e ao mesmo tempo no Salão das Testemunhas de Jeová, na São Luiz Gonzaga (quase no Largo do Pedregulho ) assistindo a um Discurso Público. Em outra oportunidade, em que fora a Zona, aproveitando que já se encontrava na Cidade Nova, acho eu, fora também ao Templo da Igreja Batista, no Catumbi e, ao mesmo tempo, num Centro Espírita na Rua Curuzu, lá no Morro do Tuiuti ( onde buscava, diziam, mensagens psicografadas da mãe e da tia ) e em outro, o Caminheiros da Luz, na Newton Prado. Diziam tê-lo visto também no Hare Krishna, na Tijuca, nos Mórmons, e nos Adventistas do Sétimo Dia. Me custa crer. As pessoas falam demais -- e a apresentava como se fosse dele. Mas sua avó não aceitava essa hipótese, ele era um gênio do piano para ela.

A carta, por sua vez também não elucidava nada. E, como já foi dito, procurar algo que explique, ou apenas justifique, o ocorrido, em situações como essas, é tarefa desnecessária e extenuante. Na verdade, nunca estamos preparados para eventos dessa grandeza.

El Dorado, 24 de dezembro de 1967

Meu caro amigo.

... chove!

Sempre que me lembro de nós estava chovendo... Quanta chuva nós pegamos. Lembra daquela vez no Silvestre? Não te disse, mas naquela ocasião tive medo dos trovões. Parecia que estávamos perigosamente perto do céu... E estávamos!

E quando tivemos que nos abrigar em uma casa – que possuía as janelas pintadas de um amarelo prosaico e que precisava de retoques. A tinta a óleo, estourava em vários pontos de forma que perturbava a silenciosa harmonia geométrica -- abandonada lá em Santa Tereza. Mais tarde fotografamos, com a velha Haselblad da minha avó, esta casa. Não sei onde anda essa fotografia... Fotografias!

E aquela alegre caminhada do MAM à Praça Quinze, debaixo de impetuosa chuva de verão. Depois não deixaram que embarcássemos no ônibus, lembra? Já viu araras na chuva? Uma vez vi lá no Zoológico, era assim que me sentia naquele dia: feliz! (a palavra feliz aparece sublinhada no texto original ).

E quando descemos do ônibus em plena chuva para erguer uma pequena árvore, plantada recentemente, que alguém de maldade havia derrubado... E naquela tarde de verão em que caímos na piscina do São Cristóvão Imperial com roupa e tudo?

Engraçado como chuva para mim está sempre relacionada a coisas boas. Prometo pensar mais no assunto.

Neste momento estou com aquele velho vinil na vitrola, Time further out Miró reflections, , the Dave Brubeck Quartet, tocando “ Bluette”. Agora o que é incrível: só essa música, que a gente adorava e que escutávamos tanto não está arranhada deste lado do disco. Já as outras todas, que não ouvíamos tanto... Não era para ser ao contrário?

A propósito, eu queria te perguntar uma coisa: será que as cobras quando mudam de pele sentem dor? E as taturanas quando viram borboletas? Eu acho que sim! Minha teoria é que esses bichos não experimentam a dor do parto, do nascer. E quando mais velhos ( uma borboleta fica velha com dois dias de vida, não é gozado?) são obrigados pela natureza ( que já se disse, é sábia!) – ou Deus, se quiser – a passar pela dor dessa experiência, num parto deles próprios. Fiz-me entender? Eu sei que você vai dizer que as galinhas também nascem do ovo e não sei o que mais e blá blá blá... Você adora exemplos com galinhas ( lembra que você sempre falava do Diógenes: “Eis aqui um homem!” ). Eu só quero que responda ao que perguntei: sentem dor? É sim ou não, não precisa explicar. Ta? Além do mais com galinha é diferente ela choca os ovos, ajuda a quebrar as cascas...

Você já deve ter percebido, não é possível! Você não é bobo nem nada! Sim, é verdade, esta carta é uma despedida e, neste momento ( pode ser que amanhã mude de opinião ) acredito, nunca mais nos vamos ver. Na verdade, te escrevo para te dizer isto com todas as letras ( me desculpe o trocadilho ): ‘tou indo embora! (sublinhado no original)

Era só isso, mas, você sabe como sou inseguro. Desejei ser mais informal, não consegui. Ai iniciei daquela forma, falando de chuva, de água, que para mim tem o claro significado de passagem, purificação (sublinhado no original). Mas voltando ao assunto, é adeus pra sempre mesmo, espero não te magoar. Em anexo, estou te enviando alguns postais que eu criei e achei legal te enviar; uma frase e uma fotografia do Hesse (que encontrei em uma revista) -- que você sabe que eu adoro -- e o poema I Died for Beauty, da Emily Dickinson, aquele: “Until the Moss had reached our lips – And covered up – our names –“ . É para você se lembrar de mim cada vez que encontrar esta correspondência nas tuas coisas.

Não deixa de ver “ Les liaisons dangereuses ”, do Vadim. Um filme fantástico. Estética pós-guerra francesa, bem anos cinqüenta. A trilha sonora é Jazz, maravilhoso. Por falar em Jazz,

(vire)

se você puder, compre o disco novo do Oliver Nelson, El blues y la verdad abstracta, é a tua cara.

Não esquece o ferro, de passar roupas, ligado. Desliga na tomada.

Não deixe de verificar se as portas e janelas estão fechadas, antes de sair ou quando for dormir.

Não deixe de trocar a água dos gatos todo dia e regar os bonsai da varanda (só borrifar ).

Beijos,

M.

P.S.: Não te deixo endereço ou telefone para contato, porque também não sei para onde estou indo.

M.

“Pois , eis a pedra que pus diante de Josué!

Sobre a única pedra há sete olhos. Eis que

gravo a sua gravura (...).”

Zacarias 3: