NOS DIAS PARES, ÀS VEZES, CARUSO CANTA

CARLOS ZÜRCK CRUZ - São Cristovão, Rio de Janeiro, 1955. Professor, Pós-Graduado em Artes Plásticas, Artista Plástico e Escritor. "... sou plural, se fosse singular seria CARLO..." 2003 - premiado (1º lugar) no II CONCURSO MUNICIPAL DE CONTO - PRÊMIO PREFEITURA DE NITERÓI; 2005 - premiado (1º lugar) no III CONCURSO LITERÁRIO DA FEDERAÇÃO DAS ACADEMIAS DE LETRAS E ARTES DO RIO DE JANEIRO; 2006 - premiado (2º lugar) no XVIII CONCURSO INTERNACIONAL DE VERÃO (Edições AG).

quarta-feira, julho 18, 2007

NOS DIAS PARES, ÀS VEZES, CARUSO CANTA

“Chiù luntana me staie,

cchiù vicina te sento.

Chi sa a chisto mumento

Tu a che pienze...che ffaie!

Tue m’ è miso ‘ int ’ ’e vvene

nu veleno ch’ è ddoce.

Nun me pesa sta croce

ca trascino pe’ te.”

(Bovio,Valente e Tagliaferr)i

PRELÚDIO

Ato I

,os telefones ainda eram negros naqueles tempos, acho que os automóveis também, e um homem havia morrido dentro de um deles, sentado ao volante, morte natural. A poça de sangue que vomitou foi o derradeiro mal que saiu de sua boca de homem. Estava amarelo e olhava fixo para o teto do carro, parecia dando uma gargalhada muda, satisfeito por assustar crianças da Escola Pública.

Naqueles tempos de telefones e automóveis negros e mortos gargalhando no trem fantasma da existência, eu mal havia deixado os palhaços silenciosos desmontando seus carros debaixo da lona laranja e azul da fantasia quando o coração da estatua do Sagrado Coração começou a pulsar nos meus sonhos, nos de Christian e nas páginas da “O Cruzeiro”. Imenso coração de gesso, pintado de esmalte sintético vermelho, pulsando assustador. Nesses tempos aos velhos chamava-se Durval e eram surdos e as casas de muro

de pedra baixo e cerca viva de guaco que servia para fazer xarope. A letra X era quase no final da cartilha, sempre faltava muito para chegar lá, a palavra xexéu também.

M. tocava Danúbio Azul no piano da escola, e nos contava histórias apavorantes ocorridas em casas iguais àquelas: de muro de pedra e cerca viva de guaco. Histórias que ele havia presenciado pessoalmente com seu cabelo à Príncipe Danilo empastado de gomalina, seu terno azul desbotado sem gravata e com seu guarda-chuva negro. Seus sapatos não eram como os telefones ou automóveis negros, eram como um lápis que se usava na escola: bicolor.

Ao abrir ao acaso um livro na biblioteca da escola poder-se-ia, com facilidade irritante, encontrar qualquer uma daquelas histórias que M. contava; isso nos impressionava sobremaneira.

Várias obsessões consumiam as horas dos dias úteis de M., mas pedras do calçamento da rua eram sua obsessão predileta. Não tinha vergonha de passar horas escavando com um palito de picolé em torno dos paralelepípedos para depois retirá-los do alinhamento secular, que mão operária havia colocado, só porque eram de uma superfície muito lisa e cintilante, diferente dos outros da fileira. Era tão obstinado nesse serviço que desde que havia se mudado para aquele local, a rua parecia uma boca banguela. Desconhecíamos quantos paralelepípedos tinha em casa. Além disso, também fumava e isso fascinava os meninos que queriam ser como ele: músicos e fumantes.

Nada se sabia de sua família e sua casa permanecia fechada, portas e janelas, dia e noite nos dias ímpares. Nos dias pares, às vezes, sua avó abria uma das bandas das janelas e punha Caruso para cantar o quanto à corda do gramofone agüentasse.

Caruso, Tito Schippa, Carlo Butti, Beliamino Gilli, Giuseppe Di Stefano, Mario Lanza, Mario Del Monaco, M. sabia o nome das vozes que gritavam no gramofone da avó. Nós ouvíamos sem conseguir distinguir quem era Butti e quem era Gilli e, com lápis bicolor, fazíamos lindos desenhos abstratos durante as aulas de religião de Dona Conceição. M. sabia disso e nos interceptava na rua e dizia que isso não era correto e que ia

crescer cabelo na palma das mãos da gente e a professora ia pôr todos de castigo se não soubéssemos a Salve Rainha.

INTERMEZZO

Ato II

Quando ventava e chovia no dia de Natal era certo acontecer uma desgraça, dizia-nos M.

Naquele Natal, choveu e ventou e M. passou apressado, mais pálido do que nunca, com as mãos enterradas nos bolsos do paletó desbotado, nem falou conosco. Diziam que havia crescido pêlos nas palmas das suas mãos, há dias andava assim com as mãos nos bolsos.

A chuva passou e fomos pisando as poças para a porta da casa dele, era dia ímpar, mas a casa não estava fechada, acontecera alguma coisa. Caruso gritava Passione no gramofone. Pessoas da vizinhança entravam e saíam. Entramos também.

M. tinha tomado formicida com guaraná Princesa, diziam as pessoas. Estava deitado, quieto, no chão de tacos da sala, acho que nem respirava, com seu terno azul e os cabelos engordurados brilhando de Gomalina. Os olhos fechados tinham algo de feminino, eram os cílios muito grandes, nunca havia reparado. Nos cantos da boca escorria uma espuma branca. Mas as palmas de suas mãos estavam limpas como sempre. Não havia crescido pêlos como os garotos diziam, M. não ia mentir pra gente: nunca havia feito desenhos abstratos com lápis bicolor durante a aula de religião.

“Porque então comigo as flechas

do todo-poderoso, sendo sua

peçonha servida por meu espírito;

enfileiram-se contra mim os

terrores da parte de Deus.”

Jó 6:4