NOS DIAS PARES, ÀS VEZES, CARUSO CANTA

CARLOS ZÜRCK CRUZ - São Cristovão, Rio de Janeiro, 1955. Professor, Pós-Graduado em Artes Plásticas, Artista Plástico e Escritor. "... sou plural, se fosse singular seria CARLO..." 2003 - premiado (1º lugar) no II CONCURSO MUNICIPAL DE CONTO - PRÊMIO PREFEITURA DE NITERÓI; 2005 - premiado (1º lugar) no III CONCURSO LITERÁRIO DA FEDERAÇÃO DAS ACADEMIAS DE LETRAS E ARTES DO RIO DE JANEIRO; 2006 - premiado (2º lugar) no XVIII CONCURSO INTERNACIONAL DE VERÃO (Edições AG).

segunda-feira, novembro 21, 2011

ARCA - ALCOBAÇA REPAROS CASEIROS

quinta-feira, maio 13, 2010

MINHA PARTICIPAÇÃO NA MOJO BOOKS COM O CONTO "WOWIE ZOWIE", INSPIRADO NA MÚSICA DE FRANK ZAPPA

sexta-feira, maio 07, 2010

sábado, abril 12, 2008




sexta-feira, julho 20, 2007

A SOMBRA DO HOMEM QUE CAMINHA A SOMBRA

“... Existe um enigma maior na

sombra de um homem que

caminha(...) do que em todas

as religiões passadas,

presentes e futuras.”

De Chirico

Figura 1

Constituída pelo desenho

de um triângulo

, três caracóis já havia posto sobre o ponteiro dos minutos do relógio de mesa da sala de jantar. Um velho carrilhão francês, belíssimo, de marca Vedette. Observava, com a respiração suspensa, ansioso. Como o relógio de mesa de Frederico II, O Grande, quando seu pai morreu, aquele relógio também havia parado eternizando, no concretismo pontiagudo dos ponteiros, a hora do destino, o fim do seu pai. Não sabia a que atribuir tal coincidência, mas a partir desse momento esse relógio passou a ter um significado especialmente amargo para ele.

Agora ali estava, rosto colado ao mostrador, observando a ação dos caracóis que com absoluta certeza, haviam de salvá-lo de, um dia qualquer de primavera, acreditar que o mundo mentia-lhe.

Tanto a sala de jantar, como de resto toda a casa, vivia durante o dia eterna penumbra, à noite escuridão total. Nenhuma luz era acesa.

Os móveis – mesa, cadeiras, arca, réplicas do estilo bolachas – em jacarandá, todos meticulosamente polidos com óleo de peroba, possuíam estranha cor de couro envelhecido e as cadeiras eram mesmo forradas com esse material, preso a estrutura de madeira com enormes tachas douradas -,escuro, que combinado ao verniz, imprimia veementemente o aspecto sombrio que, como nevoeiro, flutuava à sala de jantar. Percebia-se fisicamente isto ao entrar lá.

A casa, que se situava à Rua São Januário, era em estilo neoclássico, pé-direito com quatro metros, três portas balcão com vidros trabalhados a jato-de-areia, motivos florais. Escada lateral e porão. O piso da sala, de tábua corrida, canela, rangia exalando seu odor adocicado, tornando ainda mais trágico o ambiente, quando o avô saía do seu quarto para o banho de sol diário, com sua harmônica de boca e um cobertor das Casas Pernambucanas, às costas. A face ossuda, escalavrada pelo impiedoso arado do tempo. Bigode hirsuto espetado farto e branco, barba por fazer, olhos cavados. Aquele velho italiano, combatente da Primeira Grande Guerra que ficara cego pela absorção do gás mostarda, nunca esbarrava nos móveis ou derrubava um bibelô, e eram muitos, tampouco necessitava de luzes acesas. Suas mãos tateando, inventavam e reinventavam seu universo iluminando-lhe o caminho que os olhos vazios de cego não adivinhavam.

Passava todas as manhãs sentado em um banquinho pintado de branco, ao sol, de frente para a parede, que não via, soprando marchas militares em sua harmônica e fazendo a marcação com o pé direito que batia com inusitado vigor contra o chão de terra do quintal dos fundos.

Às vezes, parando de tocar, improvisava violento e confuso discurso, em italiano, em que se percebia, não sem alguma dificuldade, descrever as últimas cenas que seus olhos haviam registrado: cenas de guerra. Trincheiras; lama; cavalos; sangue e amigos mortos. Sobrevivera, mas marcado irremediavelmente pela miséria e pela morte que cada dia de cego se encarregava de calcar-lhe na alma. A morte inconclusa que silenciosamente, já há mais de cinqüenta anos, o invadira pelos olhos. Outras vezes, em silêncio, chorava.

Figura 2

Constituída pelo desenho de

um losango.

,desde que o pai morrera havia assumido o seu lugar na relojoaria na busca diária do sustento, seu e do avô. Nunca pensara em lidar com essa profissão, mas outra coisa não sabia fazer. Assumiu a loja como quem assume um crime íntimo. Ainda assim, por mais paradoxal que isto possa parecer, amava os relógios. A beleza sóbria, minimalista de um relógio de sol, a magia de uma ampulheta. “Você já viu uma clepsidra?” Sempre que fazia a defesa apaixonada de sua ocupação, iniciava com esta pergunta, mas, naturalmente, não esperava respostas, nem positiva nem negativa. Simplesmente não dava tempo para reflexões e imediatamente se punha a falar da beleza da mecânica de um clepsidra de rotação ou “relógio dell argent vivo” - na verdade como o mercúrio era conhecido no séc. XVIII: “prata viva” - também conhecido como clepsidra de Afonso X”. De um relógio de sala ou de parede, estilo Luiz XIV, séc. XV, em cuja porta Charles–André Boulle usou uma técnica de marchetaria inventada por ele em que associava carapaça de tartaruga e latão, uma jóia barroca. Os relógios de bolso de Breguet–Abraham Louis, séc. XVIII. “Semi–Sabonete”, com tampa vazada permitindo ver as horas. “Sabonete”, com mostrador totalmente coberto por uma tampa decorada. Um fanático apaixonado pelos engenhos que o levavam à destruição que ele não percebia.

Na loja foi que compreendeu profundamente o pai e sua muda angústia do tempo vivido. Ele havia acertado cada relógio da relojoaria com horas diferentes de modo que era impossível - uma vez trancado na relojoaria - saber a que horas ia o dia. Dificultando assim o aparecimento da dor fina, no lado esquerdo do peito, que o passar do tempo lhe provocava. Mas a noite inexorável, enfim, chegava e era necessário retornar a casa. Com ele, essa estratégia do pai não funcionava. Achava que com o pai também não havia dado muito certo, uma vez que a angústia havia estourado seu coração na rua, numa noite de chuva, quando retornava do trabalho.

Era sempre menos infeliz no caminho de casa ao trabalho e de volta a casa. Ao caminhar para o trabalho, principalmente ao final do inverno, sem precisar por que, sentia-se imensamente solidário com o próximo. Até dava uma ou outra esmola aos mendigos que, ao acaso, encontrasse. Quando retornava a casa, as estrelas solidárias é que lhe estendiam esmolas na forma de luz, o que estancava momentaneamente a infelicidade do dia torcido na relojoaria, - comovia-o, sobremaneira, uma pequena constelação, que Nicolas Louis de Calle descobriu em 1752 no céu austral, quando da expedição ao Cabo da Boa Esperança, que se chama relógio. Sorria consigo mesmo ao observá-la -. Sim, momentaneamente, pois no caminho de volta, inevitavelmente, passava pela loja de “animais empalhados” – cujo técnico, aborrecido, sempre corrigia: “taxidermizados, taxidermizados.” – da esquina, cuja simples proximidade exercia sobre seu organismo uma inexplicável ação perturbadora a ponto de provocar-lhe febre, erupções na pele, flatulência, um mal estar geral que não raro terminava em vômitos. Às vezes, pensava em dar a volta no quarteirão. Subindo pela Emancipação, Praça Argentina, Coronel Cabrita, Carneiro de Campos e São Januário no sentido contrário, para evitar a loja, mas isso suprimiria a visita cotidiana que fazia à loja de móveis usados, um antiquário, na verdade, que ficava ao lado desta outra e que era responsável, como as estrelas, pelos momentos menos infelizes de sua vida diária. Este dilema jamais conseguiria resolver. Na loja de móveis usados, onde sempre ficava um quarto de hora exato, lembrava da mãe que não conhecera. “Gymnopedies” de Satie era a suave e rigorosa trilha sonora de sua existência. Haviam-lhe dito, não lembrava quando, que sua mãe, que não conhecera, sempre ouvia. Ele fascinado pela história, desde pequeno talvez, tornou-se cativo da canção. Ouvia-a sem cessar, incansavelmente, horas a fio, tentando compreender a mãe que não conhecera. Beethoven não, nunca ouvia. Por glorificar o homem odiava Beethoven. Odiava também, intimamente, a mãe que dando-lhe a vida, dera-lhe também a morte, senhora de todas as contradições.

Assim consumia seus dias e sua esperança.

Figura 3

Constituída pelo desenho

de um círculo.

, dia desses, final de inverno, quando caminhava para a relojoaria a distribuir esmolas, lembrou-se da profunda alegria, confusa e estonteante, que sentia, quando criança, em encontrar um caracol sob um vaso de plantas no jardim. Apercebeu-se que necessitava dessa alegria agora. Apenas os caracóis – e somente eles – seriam capazes de libertá-lo dessa dor do tempo que também o acometera. Com os santos óleos da alegria ingênita da infância, destilados pelos caracóis luzidios, despregaria o visgo do tempo aderido a alma. Movido por essa súbita esperança retornou imediatamente a casa. Este dia não trabalhou na relojoaria, consumiu-o em busca dos pequenos moluscos que se transformaram na esperança última de não acreditar que o mundo mentia-lhe.

No banheiro, sobre a geometria glacial do chão, completamente nu, deitado, era Cristo crucificado. Textos esgarçados vinham-lhe à boca: “Eli, Eli, lamma sabacthani!” Quando criança os havia ouvido na vida, paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo irradiado todos os anos de sua infância febril, na sexta-feira santa, pela rádio Nacional. O rádio, sua generosa escola de emoções: novelas, programas de humor, as reclames, canções... Ray Charles, nada entendia, mas aquela voz cálida e cega o comovia. Os acordes líquidos escorriam-lhe dos olhos salgando-lhe a boca: “I can stop love in you”.

Chegava da escola pública em torno do meio-dia, comia alguma coisa, trancava-se no quarto e ouvia a programação do rádio até a noite. Mantivera esse hábito, quase sempre dormia com o rádio ligado, um Westinghouse à válvula que pertencera à mãe que ele não conhecera. Numa simbiose daliniana, algas do sonho e o fungo das falas dos locutores fundiam-se, o que lhe dava um prazer imenso e sensual. Por vezes acordava sorrindo no meio da madrugada com o avô aos socos na parede incomodado com o ruído do rádio ligado.

“Eli, Eli, lamma sabacthani!” E morria. Quando rapaz encenava quase que diariamente, como pernicioso vício, a morte de Cristo, como ouvira no rádio. Um amálgama de misticismo e nostalgia inchavam-lhe o peito magro, até que as lágrimas quentes escorriam viscosas invadindo-lhe os ouvidos causando incômodo torturante. Único momento em que Cristo cobria-se de um lascivo significado para ele.

Outras vezes emanava-lhe do cérebro compungido um jingle, vicioso e ridículo que cantarolava baixinho:

“A preta é muito fraca, / a branca não é certinha, / cachaça boa é Mulata. /Mulata é que é caninha.”

Braços abertos, mãos e pés juntos, trespassados pelos dolorosos cravos da imaginação recorrente. Espinhos engastados no crânio. Sentindo o frio, geométrico abstrato das pastilhas do piso, penetrar-lhe as costelas:

“Fizeram muita cachaça, / nenhuma tão gostosinha. /Mulata é a que faltava, / Mulata é a que dá pé, / bebe velho, bebe moço, / só não bebe quem não quer”.

“Aguardente Mulata um produto Socácia”.

Desde sempre era-lhe difícil sair da personagem e retornar a própria carne nada heróica, nada santificada, nada sagrada, sem um grande sentimento de culpa. Mas, voltava imediatamente aos caracóis que funcionavam, já agora, como uma expiação desses pequenos pecados íntimos.

Figura 4

Constituída pelo desenho de

uma garatuja.

, caracóis, centenas deles, percorriam toda a casa arando em prata as paredes, abrindo atalhos de vidro sobre os móveis, criando mosaicos líquidos sobre o piso de tábua corrida. Folhas de alfaces por todos os lados, para que se alimentassem. Mas o verme do tempo, silencioso, consumia-o ainda assim, e de tal forma que só os moluscos sedavam aquela dor na alma. Mas como uma terrível mandala, em crescendo a dor, ele já não fazia outra coisa senão procurar caracóis encarcerá-los e cuidar para que não perecessem. O avô, alheio a tudo, transformava-se numa deidade cega e inconsciente, para os caracóis, quando saía do quarto para o banho de sol, provocando uma hecatombe entre eles, pisoteando-os inocente. Às apalpadelas ia determinando, implacável, o destino dos caracóis.

Não trabalhava mais na relojoaria, passavam fome.

O tempo inexorável, tecendo sua teia de segundos, consumira-lhe toda esperança. O mundo mentira-lhe. Com um profundo suspiro, abandonou os caracóis sobre o ponteiro dos minutos.

Penteou, com lento cuidado e precisão, que a profissão lhe havia emprestado, os cabelos fartos, lisos e muito negros e deitou-se. Arrumou a camisa sob as costas. Com alguma dificuldade e as duas mãos, encostou o cano da arma no peito, um pouco à esquerda – enfim as aulas de Biologia, do Professor Herculano, no Ginásio, servir-lhe-iam para alguma coisa – e com o polegar direito acionou o gatilho.

“Sobrevivi!” Foi o que lhe veio à mente surpresa. Pressentiu um calor agradável e viscoso sobre o peito. Visgo de jaqueira para pegar passarinho. Amendoeiras vermelhas como incêndios. Silencioso clarão, violeta profundo, invadiu-lhe os olhos e todo o quarto. Nada ouvia, apenas o grandioso silêncio violeta.

Pensou no avô, no quarto ao lado e sua cegueira. “Seria violeta a cegueira?”

Sono. Um sono absurdo pesou-lhe sobre as pálpebras, como quando, já tarde da noite, tentava ler algum livro sobre pintura. “Não Van Gogh.” Odiava sua mãe e Beethoven, mas odiava igualmente Van Gogh, sua luz crua, suas estrelas, seus pássaros.

Sobressalta-se, um sentimento, como um medo distante, perpassa-lhe o coração arruinado. Sentia-se livre de sua infelicidade, mas esse medo ligeiro? “Sou um covarde agora, mas ninguém o saberá.” Pensou como Julien – “Le rouge et le noir”- “Não, não se sentia um personagem, muito menos de Stendhal.” Enquanto ainda pensava estas coisas percebeu que uma música distante, despojada, impressionista e mística com seus acordes cálidos e moles invadia o quarto. “Gymnopedie, Satie!” Reconheceu com o que podia considerar vaga alegria. Ouvia perfeitamente os acordes agora. “Que mãos maternais urdiam essa teia de notas amarelas, sem peso, que, flutuando, combinavam perfeitamente com o violeta, agora intenso, que banhava todo o quarto?”

Prenhe daquele violeta e daquela canção, que projetavam-lhe, com toda certeza, seu próprio fim, pensava com lascívia, como um personagem de Camus: “Para que esse violeta? Por que essa canção?”

Sem sonhos, sem estrelas e sem pássaros, adormeceu.

* * *

Vê: um palmo são os dias que me deste,

minha duração é um nada perante a ti;

todo homem que se levanta é apenas

um sopro.

Apenas uma sombra o homem que caminha,

apenas um sopro as riquezas que amontoa,

e ele não sabe quem vai recolhê-las.”

Salmos 39:5,6

Porque ela se matou aos vinte e dois anos,

dois meses e dois dias de sua idade?

“ Assim também era possível que no mundo cotidiano

e nítido (...) se abrisse uma porta levando a outro

mundo, abafado, ardente, apaixonado, desnudado,

devastador.”

Robert Musil

“ Quando se aproximou dele (...) ele a agarrou

imediatamente e lhe disse: “Vem deita-te comigo,

minha irmã.”,

2ª Samuel 13:11

“ Para os sagitarianos nada mais importante do que

desafios, metas, sonhos, ideais e fé que anime essa

busca. A dificuldade deriva da falta de perspectiva,

sentido e fé, sem isso você se sente perdido.”

“Por favor, a capela seis...?”

“Você segue em frente até o cruzeiro. No cruzeiro dobra a direita.” Respondeu-me o funcionário de bigode grisalho num sussurro, como exigia o ambiente.

Comecei a caminhar olhando os nomes das pessoas nas lápides e mentalmente calculando-lhes as idades. Tenho a impressão de que nestas situações todo mundo age assim. Além de mim, ninguém no cemitério, estava vazio e silencioso. Era Domingo de páscoa, já passava do meio-dia, e as pessoas estavam reunidas com suas famílias.

O mais triste, para mim , era quando nas lápides lia-se: Família Tal. Isso significava que a família toda ali estava. Na verdade a família não mais existia senão naquelas letras de metal sujo, espetadas na pedra, a bradar ao mundo num desesperado apelo :Não nos esqueçam! E eles já esquecidos. “Quem era a família tal?” Muito triste.

À direita era uma aléia com árvores entre os túmulos e dos dois lados, de forma que, em se cruzando no alto, tomava o aspecto de um túnel verde e sombrio. Toda a intensidade da imensa dimensão da solidão era percebida ali. Corria um vento agradável, o silêncio e o sossego eram absolutos. Aquele lado do Campo Santo justificava realmente o que dizem as pessoas: morrer era descansar.

“Ora, morrer num Sábado de Aleluia. Morrer não, matar-se!”

Era um dia nublado, daqueles em que o desenho dos prédios entristecem mais ainda a paisagem, com um céu cinza pesado sem aves, sem promessas. Ameaças apenas.

Metido em meus pensamentos não percebi que dava a volta à quadra e retornava ao início. Bem, não havia outro jeito. Ao chegar ao lugar de onde havia partido, um quarto de hora antes, resolvi consultar de novo outro funcionário. Um

Rapaz de brim cáqui com um logotipo incompreensível, bordado em carmim, no bolso da camisa – que brincava com uma criança, saída não sei de onde – veio em meu auxílio. Vivia naquele cemitério, provavelmente, mas fazia questão de mostrar-se vivo, mostrar que pertencia ainda a este mundo e não ao outro, sorria todo o tempo. Desconhecia provavelmente que o lado assustador do riso é a imitação que dele faz a morte. Com toda a certeza nunca havia lido Goethe, nem viria a ler – e Goethe também, já agora, é um nome em letras de ferro espetadas numa pedra em um pais distante – que diferença isto faz?

“Vou ensinar-lhe direitinho.” Afirmou entre solícito e obsequioso.

“...É. Pois acabo de dar a volta. Não consegui chegar lá.”

“Você vai até o cruzeiro, pega a direita e vai até o muro.” Disse frisando até o muro. O primeiro funcionário não havia dado este detalhe, mas eu também não havia visto caminho nenhum até o muro.

“...no meio das campas?”

“Isso, até o muro. Depois você segue à esquerda, sempre em frente, vai sair na capela seis.”

“Muito obrigado!”

Novamente pus-me a caminhar em direção ao cruzeiro.

“Bem, desta vez vou procurar não me distrair.”

Trazia no bolso direito das calças a cópia manuscrita de um soneto que ela me havia dado quando ainda éramos adolescentes. Tão logo soube de sua morte, procurei entre meus guardados aquela preciosidade. Encontrando-o, li e reli não sei quantas vezes. Lia na voz dela. Tinha em minha memória o timbre; a entonação; os maneirismos dela, que todo ano, na Festa Junina da Escola do Sagrado Coração recitava-o num dos intervalos entre o leilão e a apresentação do The Diamonds , um conjunto – dizia-se assim na época de rock, melhor seria dizer , , mas é tão medíocre. Ela tinha uma paixão obsessiva por Florbela Espanca, a Mensageira das violetas, e por este soneto em especial. Até hoje, não atinei por quê.

Saquei do bolso a velha folha de caderno, dobrada em quatro. Desdobrei-a cuidadosamente – a caligrafia era dela – e li novamente. Procurava não me distrair e perder-me no caminho de novo. Impressionante, ouvia-a declamar:

A luz desmaia num fulgor d’aurora,

Diz-nos adeus religiosamente...

E eu que não creio em nada, sou mais crente

Do que menina, um dia, o fui... outrora ...

Não sei o que em mim ri, o que em mim chora

Tenho bênçãos, d’amor pra toda gente!

E a minha alma sombria e penitente

Soluça no infinito desta hora!

Não havia reparado, estava lendo em voz alta, mas a voz era a dela:

Horas tristes que são o meu rosário...

Ó minha cruz de tão pesado lenho!

Ó meu áspero e intérmino calvário

E esta hora tudo em mim revive:

Saudades de saudades que não tenho...

Sonhos que são sonhos dos que eu tive...

Entrei na alameda com o túnel de árvores, fui recebido pelo silêncio.

* * *

No outro intervalo do conjunto, antes do leilão, ela retornava ao palco e cantava Rosa Maria, acompanhando-se ao violão:

Oh ! Rosa Maria,

levante dessa cadeira.

A noite está fria,

Venha pular a fogueira,

Olhe o foguete e o busca-pé,

Venha ajudar a soltar balão.

Tome um refresco de capilé,

Que é noite de São João.”

Ouvia-a cantando. Era muito aplaudida.

* * *

É verdade, devo confessar: havia sido muito apaixonado por ela. Talvez, ou até, por isso, estava ali caminhando entre os túmulos, tentando alcançar o tal muro, um tanto angustiado.

“Fulano.” Do árabe Fulan, alguém.

“Beltrano.” Com certeza de Beltrão em espanhol.

“ Sicrano.” Sei lá de onde.

“Família Tal.”

Voltara a ler as lápides, compungido, assobiando baixinho Rosa Maria.

Quando o túmulo possuía uma fotografia – normalmente um daguerreótipo – parava, me aproximava e tentava vislumbrar naquela imagem sépia, fixada sobre a película de prata pura, mais que o metal: a pele; os músculos; o sangue; os humores; a vida; algo enfim que me dissesse, de forma convincente, como era aquele que já não existia. Impraticável, apenas prata e cobre.

“Não é possível, pela idade em que faleceu, devia estar muito mais velho do que aparenta nessa foto.”

Em meio aos túmulos, um jambeiro em flor havia tingido de magenta todos os túmulos que seu diâmetro alcançava. O denso e viscoso aroma das flores enjoava-me como a solicitude obsequiosa do rapaz de brim caqui. A seu modo o jambeiro reafirmava sua existência. Mas também as árvores morrem. Como o rapaz que me havia ensinado o caminho, o jambeiro ainda pertencia a este mundo.

Escultura – bronzes, granitos, mármores – bastante bonitas: anjos, pessoas com a tristeza no semblante ou como que chorando, rosto entre as mãos; representações do Cristo levitando entre nuvens. Acolá o que morreu na guerra. Era da Aeronáutica. No daguerreótipo se apresenta orgulhoso de si e de sua missão, isso percebe-se bem, com um capacete antigo de piloto – com aqueles óculos presos – rindo como que desdenhando a morte. Aquele outro deve ter sido uma figura de destaque no seu tempo, possui um busto em mármore, carrara com toda certeza, sobre sua campa. Mas por mais que me esforce, seu nome não suscita em mim nenhuma lembrança quer seja na história, na ciência, nas artes ou na política.

Aquilo que um mestre ensina não é mais importante do que aquilo que insinua. Ao contrário do que é comum pensar-se, o tempo, esse mestre estupendo, mais insinua do que ensina. Impressionante como nem o mais duro granito se encontra incólume a sua ação. Em outro dos túmulos, encimados por um busto de mármore do morto que o habita, que já aqui deve encontrar-se há muito, o vento e a chuva – esses implacáveis cinzéis do tempo – vieram a criar uma alegoria – a mim parecia que com um certo escárnio – escavando os olhos e as faces da escultura, o que a fez assemelhar-se a um crânio descarnado em tudo. Muito próximo ao que, provavelmente, se transformaram as faces do morto na sua corrupção. Amarga insinuação.

Estava a ponto de distrair-me novamente. Tirei do bolso o soneto que ela, há muito, me havia dado. Passei tantos anos com esse manuscrito nas minhas coisas, alguns deles, em que pelo menos uma vez por dia eu o lia. Muitas vezes em voz alta, claro, permitindo a ocasião. Mas o curioso é como nunca o havia memorizado, “Curioso não, estranho, muito estranho”, pensei.

* * *

Era nossa festa – após quatro longos anos – de formatura do Ginasial. Lá estava eu com um luzente par de sapatos de couro, pretos, desenhados, lindos, que havia ganho para a ocasião; calça social de Tergal azul marinho, vincada; camisa social volta ao mundo, branca e gravata borboleta, também azul marinho, que minha mão havia confeccionado com tanto gosto e cuidado. Encontrava-me orgulhoso por proporcionar-lhe aquela satisfação que ela ia transformando em gestos de carinho ao arranjar minha camisa nas costas; ao pentear-me; ao apertar-me as abotoaduras de madrepérolas nos punhos da camisa. Cheguei cedo à escola, totalmente decorada para a cerimônia: bandeiras ( do Brasil , do Estado e do Município ); toalha de linho branco, bordado cuidadoso, ponto crivo; flores, muitas flores. Tudo de muito bom gosto. Ela, já lá estava – saia de sarja azul marinho pregueada; meia três quartos; sapato boneca preto; camisa de manga comprida branca; gravata azul

marinho e, supremo toque de sofisticação: luvas brancas que ela, desacostumada do adorno, arrumava freneticamente por entrelaçar os dedos forçando-os uns contra os outros. Acompanhada do pai que carregava, pendurada ao pescoço, uma câmara fotográfica, uma Flika caixote, com o orgulho de pai estampado no rosto na forma de um sincero sorriso.

Seu pai, o Sr. Valladares, um comerciante bem sucedido, era um bom pai, bom marido e bom vizinho, pelo menos era o que falavam dele no bairro e sabiamos ser verdade. Possuía uma fábrica de colchões de crina – acho que se chamava Confiança – feitos a mão, por ele mesmo e por uns poucos empregados, na Rua Henrique Valadares – que não vinha a ser antepassado seu como se poderia imaginar. E, é bom que se esclareça, apenas uma curiosa coincidência que sempre me intrigou. Na loja havia também um pombal. Eu vi, uma vez, quando lá estive ainda criança, não sei porque motivo. Criava ali pombos-correio.

Naquela ocasião, para encanto meu, chegara um pombo com uma mensagem. Ele, que conversava com meu avô, pegou o pombo com uma das mãos carinhosamente, e retirou a mensagem, atada a uma das patas do bicho, com a outra – e o pombo com uma imensa tranqüilidade laranja nos olhos – acho que também era assim carinhoso com os filhos.

A cerimônia foi longa e formal: hinos, discursos, discursos. Apresentação da Banda do Mestre Novo – que tocou um dobrado, de autoria do próprio, que me agradou bastante. Entrega de diplomas, um a um; mais discursos. Eu, em suspenso, assistia àquilo tudo como se lá não estivesse. Acho que era minha forma de ficar feliz. Durante toda a cerimônia permaneci ao lado dela. Era uma satisfação adicional. Ao término, após a longa e extenuante sessão de fotografias – aliás nunca vi essas fotos, lembro-me agora, e me causa uma sensação desconfortável saber de minha imagem coadjuvando fotos em álbum que me é completamente estranho, bastante desagradável – ao fim da qual o pai dela convidou-nos, a mim e a minha mãe, para um “pequeno lanche”, como havia dito. Fomos.

Uma vez na casa, fomos recebidos pela mãe com seu irmão mais novo ao colo, um bebê de um ano, pouco mais. Seu irmão mais velho (igualmente músico e poeta) – por quem ela devotava grande , e segundo os colegas suspeita, admiração. E, que, aliás, faleceu há pouco mais de um ano num grave acidente de motocicleta (no cruzamento da General Argolo com a General Bruce) que deixou a família muito abatida. E a ela, especialmente, num tal desespero, de forma que sua saúde mental, anteriormente abalada, foi se agravando até terminar nisto - não estava lá. Não sei até hoje porque sua mãe não havia ido à formatura, teria sido por causa do bebê?

Foram servidas, entre outras delícias, azevias do algarve – uma espécie de pastel doce, passado no açúcar com canela, recheio de purê de grão-de-bico, mel, canela- em- pau, casca de limão da Pérsia e gemas – saborosíssimas (como, aliás, são todos os doces que os árabes generosamente ensinaram aos portugueses, além da sensualidade e do Fado), refresco de groselha e guaraná Princesa.

Secretamente havia levado um presente para ela. Julgava que não mais a veria, portanto queria deixar com ela algo muito significativo para que não se esquecesse de mim. Acreditava nisso. A oportunidade surgiu, um tanto compulsória, quando já estávamos para ir embora: dei-lhe o exemplar de Epopéia Ilustrada – com a história em quadrinhos do romance O Ateneu, de Raul Pompéia – da Ebal, com que minha mãe havia me presenteado alguns anos antes. Era o que então eu possuía de mais valioso. Olhou-me com um espanto sincero na expressão do rosto, boca aberta num Oh silencioso que, lentamente foi se transformando num sorriso.

“Para mim?” Sussurrou desconcertada, ela que era sempre tão segura e formal. Apertou a revista contra o peito, num gesto espontâneo de carinho e correu para o interior da casa. Pensei haver sido a forma que ela encontrara para despedir-se de mim, mas logo veria que não. Já de braço dado com a minha mãe – costumávamos andar assim – pronto para sair, ela retorna lá de dentro e me entrega uma folha arrancada de um caderno, dobrada em quatro. Agradeci surpreso e pus o papel rapidamente no bolso. Acho que corei, ao menos senti um calor me invadir o rosto e alcançar-me as orelhas. Foi a última vez que estivemos, por assim dizer, face a face. No caminho para casa, o papel no bolso da calças me incomodava. Apalpava-o de tempos em tempos. A curiosidade não era maior do que o receio de perdê-lo. Queria ver imediatamente o que estava escrito, mas envergonhava-me de seu possível conteúdo. Por desconhecê-lo não queria que minha mãe o chegasse a ver, como o meu diário. E minha mãe sempre respeitou esses meus segredos. Bem, só em casa, no meu quarto, já preparado para dormir, desdobrei-o, coração apertado, estranha sensação no estômago, e li emocionado o soneto. O mesmo que ela sempre recitara nas Festas Juninas da escola. Daí em diante nunca mais me afastaria dele ou deixaria de lê-lo. Até hoje foi o presente que mais me comoveu.

* * *

Gostava da Semana Santa. Deixava-me emocionado. Tornava tudo melancólico, principiando com as esculturas dos santos, na Igreja, cobertos com aqueles panos roxos. Desde muito criança causavam-me medo que, naturalmente, suportava calado, não podia parecer frágil. Acho que intuitivamente já percebia o poder da morte, que em tudo punha aquela atmosfera sinistra de forma que mesmo no interior das Igrejas as pessoas moviam-se furtivamente, receosas daquele poder. Nas rádios, músicas clássica somente. O que servia apenas para imprimir um clima mais triste ainda aos dias que me deixavam num estado que a psicologia chama de ambivalência, ou seja, experimentando sentimentos opostos ao mesmo tempo. Agradava-me aquele sentimento de pesar que tudo contaminava, tal qual agora sinto. Acho que nos preparava, de alguma forma, para enfrentar isto. Ainda assim se sofre, mesmo sabedores da ressurreição ao terceiro dia. De agora em diante, e para sempre, vou odiar Semanas Santas, tenho absoluta certeza disto.

É verdade: havia sido muito apaixonado por ela, paixão adolescente, óbvio, mas que foi tomando outros contornos e, depois que fomos para o Clássico não víamo-nos quase nunca – a ausência agrava os sentimentos, potencializa-os, porque os idealiza – ficou séria a ponto de alguns anos atrás ter resolvido declarar-me. Como sempre fui um tanto covarde nestas coisas, articulei um plano singelo: enviei-lhe, pelo correio, dia sim, dia não, do início de janeiro até meados de abril – há dois exatos anos, agora é que me dei por isso – cada um dos sonetos publicados no livro: Cem sonetos de amor do Neruda.. Não, não me dava ao luxo de copiá – los

não, arrancava a página, sublinhava algumas palavras ou frases que tinham algum significado para mim e talvez, pensava eu, lhe dissessem da minha paixão, punha num envelope e metia na caixa do correio. De forma que enviando um, enviava dois, pois as páginas dos livros estão sempre impressas frente e verso. Não identificava o remetente. Esperava que sua curiosidade e o gosto mútuo por poesia a fizesse chegar a mim.. Foi a minha Campanha das Cem flores .

Interessante era que só três, de todos os sonetos apareciam impressos em itálico, não sei por quê. O de número vinte dois: Quantas vezes, amor, te amei, sem te ver e, talvez, sem lembranças, da série manhã; o sessenta e três: Não só pelas terras desertas onde a pedra salina, tarde. Eram bonitos, mas do que eu mais gostava era o terceiro, de número setenta e oito, da série noite: Não tenho nunca mais, não tenho sempre.

Antes de começar a enviar-lhe os cem sonetos, criei um centésimo primeiro pegando versos significativos, para mim, claro, dos criados por Neruda. Um roubo na verdade. Engraçado, deste lembro-me bem, ficou assim:

Manhã

Não tenho nunca mais, não tenho sempre

A turgência que envolve tua forma delicada,

Cujo esplendor de mel não derrubou a desordem:

Até que ressuscite a flor desabitada.

Meio-dia

Faz-me falta a luz da tua energia

Da substância azul acesa em tuas mãos

Confusas, escondidas lágrimas dos dias

Como o verão numa igreja de ouro

Tarde

Oh palpitante prata de peixe polido e puro

Fogo que dança e sobe a invisível escada

Até entregar os últimos segredos da espuma

Noite

Até que sejamos um espaço escuro,

Vamos ali onde não espera nada,

O resplendor de nosso amor seguirá vivo.

Na décima sétima semana enviei-lhe pelo correio, manuscrito. Era o único que enviava de próprio punho e talvez ela tenha reconhecido minha letra – “ Como vou saber agora ? “ – alimentava essa ilusão. Havíamos sido muito amigos na escola e amigos reconhecem-se pela caligrafia.

Nunca recebi resposta alguma. Depois a morte do irmão e agora isto.

Bem , o que ontem me contaram foi que seus pais estavam com tudo preparado para a ceia de Domingo de Páscoa. Todos sabemos como funciona uma casa portuguesa nestas datas, que são coisas de uma tal seriedade que até a refeição servida deve respeito às tradições. Nada de perus assados, presuntos cozidos e outros estúpidos costumes gastronômicos exógenos. A tradição é clara e existe para ser respeitada, Natal: bacalhau cozido com batatas, cebola e couve (tronchuda); Páscoa: cozido à portuguesa. Rabanada e pastéis de Santa Clara, respectivamente, como sobremesa, afora os pudins de leite; o arroz doce e aletria – Al-Itrya ( os árabes novamente) – comuns as duas comemorações. Acompanhando um vinho tinto seco durante e um Porto depois da ceia. Portanto, o que seria servido na casa dela seria cozido à portuguesa, preparado com as três carnes: fuçada; escornada e esgravilhada mais a charcuterie; os legumes e as hortaliças. Ainda que o ambiente emocional daquela família, em função da morte do primogênito, não se encontrava propício a festejos, ao contrário, eles cumpririam com todo o rigor o que rezava a tradição.

Tenho a impressão que nestas situações, todos agem assim, mas é lamentavelmente desnecessário e emocionalmente extenuante a busca de algo que explique o ocorrido: um bilhete; uma palavra; uma advertência; um indício. Não obstante, e ainda que por ventura se encontre, nunca são explicações cabais. Jamais estaremos preparados para eventos dessa monta. Na madrugada de Domingo haviam-na encontrado dependurada, por um cinto atado ao pescoço, na bandeira da porta do seu quarto. Enforcara-se.

“Para seus pais, das duas tragédias, provavelmente, essa era a mais incompreensível.” Pensei.

Nunca havia percebido nela a mais ligeira, que fosse, tendência auto- destrutiva. Ao contrário, era, como é de costume dizer, cheia de vida,exuberante, espontânea, impetuosa, embora melancólica. Mas todo poeta, ou quem ama a poesia, é assim um pouco.

“Como ser neutro face à tragédia ? “ Pensei novamente.

“ ... corredor junto ao muro, à esquerda ... paralelo ao muro...” As palavras do rapaz de cáqui, vieram-me a mente. Entrei. O tempo, a situação, as circunstâncias tornavam-me mais suscetível do que o normal e transformavam o longo corredor – túmulos do lado esquerdo e o tal muro do direito num pesadelo pueril: angustiante corredor, daqueles cortiços onde é provável que habitem todas aquelas pessoas tristes do Hopper, que pode ser visto em qualquer filme B Hollywoodiano no Cine Natal e que, por motivo que me foge à compreensão, fixou-se-me na mente. Mas era esse o aspecto do corredor para mim naquele momento, soturno.

Vi com desalento, as luzes amarelas dos postes da rua acenderem-se preguiçosa e desnecessariamente. Tinha de apressar-me, retornaria por aquele mesmo caminho. Não podia sair dali quando começasse a anoitecer.

Por instantes, pareceu-me ouvir ao longe Ella Fitzgerald cantando “The way you look Tonight “. Impossível, claro que era um delírio meu. Apalpei a velha folha de caderno dobrada em quatro, que trazia no bolso direito das calças e apertei o passo.

O ocaso, de todos os momentos do dia, era o que me provocava a mais cruel melancolia, principalmente se fosse um domingo nublado e as ruas, por onde circulasse, arborizadas de ambos os lados e sem pessoas transitando. Aí, a sensação de abandono era-me insuportável. Nem um animal me tirava desse estupor.

Finalmente o prédio.

Capela 6 – 2º andar. A placa na parede indicava.

17:30 Rosa Maria Valladares.