NOS DIAS PARES, ÀS VEZES, CARUSO CANTA

CARLOS ZÜRCK CRUZ - São Cristovão, Rio de Janeiro, 1955. Professor, Pós-Graduado em Artes Plásticas, Artista Plástico e Escritor. "... sou plural, se fosse singular seria CARLO..." 2003 - premiado (1º lugar) no II CONCURSO MUNICIPAL DE CONTO - PRÊMIO PREFEITURA DE NITERÓI; 2005 - premiado (1º lugar) no III CONCURSO LITERÁRIO DA FEDERAÇÃO DAS ACADEMIAS DE LETRAS E ARTES DO RIO DE JANEIRO; 2006 - premiado (2º lugar) no XVIII CONCURSO INTERNACIONAL DE VERÃO (Edições AG).

quarta-feira, julho 18, 2007

A NOITE EM QUE ME TORNEI JEFF CHANDLER

Terás desejo ardente de teu esposo,

e ele te dominará.”

Gênesis 3:16

“Ninguém nesse mundo é feliz

tendo amado uma vez”

Seixas e Coelho

“Desculpe-me te ligar a esta hora da noite, mas tenho que te dar essa notícia: ela não resistiu, faleceu”. Senti uma vertigem, mas era como se esperasse esse desfecho. Não sabia o que dizer-lhe.

“Alô, alô! Está me ouvindo?”

“Tudo bem”.

“Depois eu ligo pra te dizer o horário do enterro”.

“Obrigado”. Desliguei.

No dia anterior ele havia me ligado dando conta de que ela havia tentado o suicídio jogando álcool nas roupas e tocado fogo, que no desespero, correra à rua e fora socorrida por vizinhos alertados pelos gritos, mas que seu estado era grave e que me preparasse para o pior. Não sei por que, mas fiquei verdadeiramente abalado com a notícia de sua morte.

Foi na boate Dunga – a população local, não sem razão, chamava inferninho – na São Januário, que a vi pela primeira vez – ela era uma das go-go girl. Fazia strip-tease três vezes por noite, enquanto a banda tocava Fever. Era muito aguardada e aplaudida. Soube disso muito mais tarde – eu passando dos trinta, ela aparentando mais.

Estava lá sozinha.

“Estranho!”

Comparando-a com as mulheres que freqüentavam os bares de S. Cristóvão ela era bonita. Nada tinha de excepcional, mas havia uma espécie de quietude nos seus gestos, certa tristeza no olhar, algo reconfortante que só as pessoas em paz – ou os loucos – transmitem.

Não freqüentava a boate, mas naquela noite, precisando de dinheiro, havia ido lá pedir ao meu irmão, que era o saxofonista da banda.

Não é por ser meu irmão não, que fique claro, mas um ser humano incrível. Dois anos mais moço do que eu, mas uma maturidade; uma sabedoria; uma experiência de vida, adquiridos em bares e botequins – alguns não muito recomendáveis – do Brasil e até do exterior (tocara em Buenos Aires, em Miami...), sujeito singular. Um músico que detestava a vida de músico: ensaios; estúdios; tocar acompanhando gente medíocre, mas de sucesso; reuniões com outros músicos etc. Desde os dezesseis anos, quando abandonara a carreira militar, nessa vida. Mas muito pragmático, e como só sabia fazer isso e precisava de dinheiro, tocava em bares e boates – às vezes mais de três numa mesma noite – porque era aí onde se “sentia melhor”. Àquela época, deixou-me morar, por um tempo, no apartamento que havia alugado na Avenida do Exército, aquela rua que possuía uma árvore no meio. Muito pitoresco.

Havia ido a Dunga pedir um dinheiro ao meu irmão, mas aquela mulher acabara de desviar-me do meu objetivo.

Encaminhei-me ao banheiro. Passando próximo dela observei-a; não era alta, possuía um corpo bem feito, mas o que mais chamava atenção eram suas pernas, muito bem torneadas. Bem, era o mínimo que se podia esperar de uma mulher com aquele tipo de trabalho. Mas eu nada sabia, acreditava ser ela apenas um cliente da boate.

Usando sapatos de salto alto, pretos e meias arrastão. Fumava elegantemente um charm e olhava fixamente o Martine com gelo. Não tomou conhecimento da minha presença.

A música mudara. A melodia agora era mais sensual do que melancólica. Lembrei-me do motivo de ali estar e fui ao encontro do meu irmão, agora por mais um motivo: “Quem era aquela mulher?”

“Ela é maluca!” Sentenciou meu irmão, como que me advertindo, sem a menor emoção e com o pragmatismo que lhe era peculiar, estendendo-me uma nota de cinco mil cruzeiros. Aquela azul e laranja, claros, com a figura do Tiradentes, que anos mais tarde ganhou um carimbo, do Banco Central, de cinco cruzeiros novos. Coisas dos economistas da ditadura.

Sentei-me numa mesa próxima a ela e pedi um gim-tônica com bastante gelo. Eu bebia pouco, mas necessitava justificar a minha permanência ali.

No segundo drinque, encorajado pelo álcool, peguei meu copo e fui até a mesa dela. Sentei-me, acendi um Luxor parcialmente bêbado. Ela ali, olhar ausente.

Peguei meu drinque e bebi de uma vez.

“Garçom, mais dois.”

Ouvindo o pedido ela acabou com sua bebida. “Reagira. Bom sinal.”

Quando os drinques chegaram, tomamos um gole e ficamos olhando a banda cujo crooner, um travesti, à distância em que estávamos, lembrava, no porte e no timbre vocal, a Shirley Bassay. Cantava com aquele acento agressivo, Send in the clows. A fauna e a flora boêmia circulavam.

Passaram-se alguns minutos até que ela falou, sem tirar os olhos do palco, com amargura e profunda certeza:

“Não gosto das pessoas!”

“Também não.” Concordei.

A música cessou. Nada parecia mover-se dentro daquele ambiente. O tempo deixara de existir. Terminou sua bebida. Fiz o mesmo.

“Sou louca, você é louco?” Perguntou-me de forma abrupta.

“Sim.” Respondi com toda a naturalidade possível.

Insinuei um gesto para chamar o garçom.

“Não, por favor. A próxima rodada é minha...” Disse abortando minha intenção. Agradeci.

“... é um prazer. Qual o seu nome?”

Chandler. Jeff Chandler.” Respondi como o James Bond, mentindo o meu nome.

“Você é louco o bastante para quebrar o espelho de um bar?” Sussurrou-me.

“Já fiz isso.” Menti novamente.

“Onde?”

“No Flecheiro.” Menti de novo.

“Não gosto do Flecheiro, me deprime.”

“Não freqüento mais.” Outra mentira.

Terminadas nossas bebidas convidei-a para ir ao Chalezinho, na rua de trás, bem mais intimista. Mesas para casais, com uma luminária para cada mesa e divisórias de vime entre elas, muito aconchegante.

Eu havia ganhado, recentemente, um prêmio num concurso de contos patrocinado pelo O Globo e a livraria El Ateneo. Esperava poder tornar-me um grande escritor e aquela experiência podia servir-me para um romance, por exemplo. De tal forma acreditava nisso que deixei-me levar ao sabor da insanidade. Dela e minha.

No Chalezinho escolhemos uma mesa ao fundo, uma das poucas vazias. Era um sucesso o piano bar. Ao piano M. tocava Danúbio Azul, mais melancólica do que sensual. Recordo perfeitamente sua figura esguia e trágica sentada ao piano. Seus dedos longos como que acariciavam o teclado, seus olhos negros e febris contrastando com sua palidez doentia.

Pedimos bebida. O garçom nos serviu.

Ela examinou-me quase com carinho.

“Como foi?” Perguntou-me.

“O que?”

“O espelho do Flecheiro.” Disse com uma leve contrariedade e encarando-me incisiva com aquele olhar desvairado: frio, esmagador, apaixonante. Em seu rosto uma paradoxal mescla de frivolidade e sabedoria.

“Não quero falar mais disso.” Retruquei.

Voltamos a beber, em silêncio.

Ela suspirou longamente como se pusesse um fim na quietude de seus gestos.

“Vou quebrar o espelho deste bar!”

“A cabeça é sua, vá em frente.” Disse para não decepcioná-la, mas, sinceramente, não acreditava que fosse louca a esse ponto. Voltei a minha bebida.

Ela levantou-se, pegou o copo vazio erguendo-o.

Num ato reflexo, um tanto retardado pelo álcool, saltei para impedi-la. Tarde demais.

O copo descreveu um gracioso arco no ar chocando-se contra o espelho.

O estrépito encheu o bar de apreensão. Estilhaços reluzentes voavam para todos os lados. Assustador e belo como um happening.

A partir daquele momento, também eu, passava a acreditar em amor à primeira vista e podia dize:...it happens all the time! Como o Ringo – ou Joe Cocker se preferir – em A little help fron my friends.

“Vamos embora.” Gritei-lhe.

Acobertados pela perplexidade que se instaurou no local, arrastei-a pelo braço. Num átimo estávamos correndo pela General Argolo.

“Rápido!” Puxava-a.

“Não consigo com estes saltos!”

“Então tira essa droga.”

Ela tirou os sapatos e calçou-os nas mãos.

Alcançamos a Dom Carlos. Ninguém nos seguia.

“Tudo certo. Coloque os sapatos.”

Apoiando-se em meu ombro calçou-os. Só aí reparei o quanto era bonita. Passei-lhe o braço na cintura com afeto.

“Vamos para onde?” Perguntou.

“Meu apartamento.”

Havíamos dado a volta no quarteirão e estávamos agora na Almério de Moura. Vi o duzentos e nove no ponto, fiz sinal. O motorista, àquela hora, não tinha pressa. Entramos. Paguei as passagens. O ônibus estava praticamente vazio, mas ela permaneceu em pé agarrada ao balaústre. Havia algo errado com ela. Olhou-me irritada.

“Sou uma mulher de respeito, pô. Quero um táxi...”

” Em dez minutos estamos em casa.”

“... não vou andar numa bosta de ônibus...” Disse frisando bosta e ônibus.

“Dez minutos!”

“Odeio ônibus... merda!”

Avenida do Exército. Acionei a cigarra. Auxiliei-a na descida. O motorista olhava-a com uma estúpida admiração estampada no rosto, se fosse mais moço – ele, não eu – diria que com malícia. Àquela hora não tinha pressa.

“Sua vida era tão desprezível e inútil quanto a nossa.” Pensei ou murmurei, sei lá. Mas havia simpatizado com ele. Uma dessas pessoas comuns que destruiu sua existência tentando melhorar de vida honestamente. Acontecera comigo também.

Ela cada vez mais bêbada – eu também, mas tentava não demonstrar. Suas lindas pernas já não obedeciam.

“Pô, você não tem carro?”

“Não.”

“Você é outro ferrado!” Não sei se, se referia a outro cara ou a nós dois.

Chegando ao prédio procurei as chaves.

“Tem algo para beber? Se não tiver não subo.”

“Tenho vinho.”

“Estou mal, perdi o controle. Você me perdoa?” Disse com uma irritante voz infantil, um tanto chorosa, apoiando-se no portão.

Encontrei as chaves no bolso de trás. Larguei-a momentaneamente para pegá-las. Estava tão empenhado na operação que não percebi que ela caía. Tentei segurá-la, caí também. Já não podia esconder o meu estado. Ficamos deitados sob a luz amarelada do poste da light, um em cima do outro rindo. Dois corpos atirados ao abismo da humanidade onde um ato não era tão ofensivo quanto outro. Não me sentia ofendido ali caído e rindo. Sua saia, repuxada na queda, expunha suas coxas. Não podia acreditar. Levantei-me.

“Levanta...” Pensei inventar um nome para ela. Mas isso não tinha a menor importância neste momento.

“Levanta!”

Ela abriu os olhos, hesitou durante alguns segundos, como se não soubesse onde se encontrava. Puxou a saia de volta, erguendo-se com minha ajuda. Abri o portão. Pressionei o botão do elevador. Escutei a porta pantográfica fazendo barulho andares acima.

Entramos. Pressionei o botão do meu andar. A geringonça iniciou a subida ruidosamente.

Chorava. Tentei acalmá-la.

Uma tarde fria de final de julho, ameaçando chuva uns vinte ou vinte e cinco anos antes. Voltava eu do barbeiro – onde havia cortado os cabelos a Príncipe Danilo, por exigência da minha mãe, uma vez que faria a Primeira Comunhão naquela semana – já perto de casa, do alto da Teixeira Júnior, vi uma movimentação incomum de pessoas na esquina com a São Januário. Criança e curioso – uma redundância – desobedecendo ordens maternas, passei da minha casa – um tanto tenso, é claro – e fui descendo como que magnetizado pelo agrupamento de pessoas. As que subiam a rua, passavam por mim contristadas, olhares pesarosos. Algo trágico percorria o ar, era perceptível. Na esquina da farmácia uma cena pungente, absurdamente dolorosa de se ver: sobre o asfalto da rua, um pequeno, diminuto corpo coberto por um lençol. E o ônibus – duzentos e nove – atravessado na rua. A brutalidade metálica do ônibus, imenso, contrastando com a fragilidade e pequenez daquele corpo não revelado. Um filete de sangue, menos do que eu poderia considerar possível, escorria para a sarjeta. Detive-me inerte, chocado: uma criança havia sido atropelada e morta. Por uma dessas coincidências, que não se consegue explicar, irrompe uma chuva intensa.

Da forma mais perversa, havia se revelado a mim – havia tomado posse de mim, como a chuva – a iniqüidade do mundo. Não sei se chorei ou era apenas a chuva escorrendo-me pelo rosto. Por dentro, com toda a certeza, também chovia.

Quando cheguei em casa, atrasado, transtornado, completamente molhado, minha mãe não ralhou. Deve ter percebido, sempre percebia – uma das funções precípuas da maternidade: perceber nos olhos dos filhos suas aflições – a tristeza mal-educada que, sem pedir licença, numa tarde chuvosa de junho, havia tomado conta de mim.

Era o irmão mais novo dela que a acompanhava na volta da escola. Ela assistira a tudo: estava na farmácia quando num repente o menino resolveu atravessar. Só muito tempo depois, quando ela me contou a história, foi que entendi, um pouco, o que se passava na sua cabeça naquele momento: seu ódio pelos ônibus; suas lágrimas; sua loucura. Nunca soube que eu havia visto seu irmão morto, naquele dia. Faltou-me coragem para contar-lhe.

Tirei-a do elevador. Estremecia, rímel escorrendo, ainda assim atraente.

Abri a porta do apartamento. Ela correu para o sumiê. Parecia sentir-se feliz agora, mais protegida. Acomodada tirou um cigarro da bolsa. Riscou um fósforo. A luz abrupta iluminou sua silhueta e me encheu de ternura.

Peguei a garrafa de vinho na geladeira, enrolei-a comum pano-de-pratos. Com o auxílio de um saca-rolha, retirei a rolha que espocou fazendo-a sorrir. Enchi duas taças, ofereci uma a ela. Pus a garrafa na mesinha e sentei-me no outro extremo da sala. Bebi um gole.

Meu irmão havia decorado o apartamento – um quarto e sala – para que se parecesse com uma pensão francesa – de terceira categoria, claro – onde havia se hospedado quando fora tocar em Paris: armário; sumiê; mesinhas e cadeiras de cana-da-índia; cama de metal; biombo decorado com motivo de pássaros, imitando pintura oriental. Um zϋrcr imenso na parede da direita e uma foto em preto-e-branco, emoldurada em pátina, do Charlie Parquer, à esquerda. Muito aconchegante.

Repentinamente, ela fixa em mim aqueles olhos transtornados, alarmantes.

“Quem você pensa que é Jeff Chandler?” Para ela haveria sempre mais uma pergunta, dissesse o que dissesse. Nada respondi. Esvaziei a taça, fui até a mesinha e enchi novamente. Esticou o braço em minha direção pedindo-me que enchesse a dela. Esvaziei a garrafa na taça dela e sentei-me, com aquele meu sorriso cínico e puz-me a observá-la.

“Pernas exuberantes”. Pensei.

Ela percebendo, cruzou-as provocantemente. Continuava com aquele olhar desvairado, acentuado pelo borrão do rímel.

“Seu safado, quem você pensa que é para trazer-me ao seu apartamento?”

“Eu sou Jeff Chandler !” Respondi com sarcasmo, para provocá-la.

“Seu safado, você pensa que me engana? Você é um desses pervertidos que atacam mulheres, miserável!” Disse levantando e pegando a garrafa.

“Essa maluca vai me atirar a garrafa.” Pensei.

“Espera aí!” Gritei.

Ela, assustando-se, ficou imóvel, com a garrafa na mão e um pungente ar de criança flagrada numa travessura.

“Você pode fazer isso, mas se errar, quebro a sua cara!” Completei com autoridade.

Devolveu a garrafa à mesinha ainda com aquele olhar vítreo e ausente. Suspirei aliviado.

Fui até a estante, retirei um vinil, coloquei na vitrola. Chico começou a cantar Retrato em branco e preto.

Sentado novamente, sentia-me estranhamente bem. O vinho e a música agiam. Ela coxas à mostra.

Já conheço os passos dessa estrada

Sei que não vai dar em nada

Seus segredos sei de cor

Já conheço as pedras do caminho

E sei também que ali sozinho

Eu vou ficar tanto pior...

“Quero que levante mais a saia.” Exigi. Surpreendentemente ela obedeceu.

“Mais um pouco, só mais um pouco.”

...o que é que eu posso contra o encanto

desse amor que eu nego tanto

evito tanto

e que no entanto

volta sempre a enfeitiçar...

Levantei-me, fiquei à sua frente. Aquelas curvas e reentrâncias, que o vestido ocultava – como outra canção lembrava – me deixavam louco.

“Levanta um pouco a perna.”

...com seus mesmos tristes, velhos fatos

que num álbum de retratos

eu teimo em colecionar

lá vou eu de novo como um tolo

procurar o desconsolo

que cansei de conhecer...

“Agora mais um pouco a saia.”

“Assim, assim está bem!” Vislumbrava sua calcinha preta de lycra.

...novos dias tristes, noites claras

versos, cartas, minha cara

ainda volto a lhe escrever

pra lhe dizer que isso é pecado

eu trago o peito tão marcado

de lembrança do passado

e você sabe a razão

vou colecionar mais um soneto

outro retrato em branco e preto

a maltratar meu coração...

Como um animal, atirei-me sobre ela, beijei-lhe as pernas, os joelhos. Não ofereceu resistência.

“Você é um maluco, um ferrado...”

Beijei-lhe os pés, pernas, coxas até o limite do vestido.

“... um maníaco, desses que estrangulam garotas. Mas sei defender-me muito bem...”

“Ora, cale a boca!” Gritei, - era a segunda vez, em menos de uma hora, que gritava com ela – não tinha nada a perder...

* * *

Há determinadas noites, de princípio de outono, em São Cristóvão, em que a brisa parece vir de longe, muito longe, com uma nostalgia da brisa marinha. Como um presságio de tempos melhores em que não haverá espaço para solidão, decepções, angustias, tristezas... Sentia isso nitidamente agora. Acendi um cigarro e tomei um gole. Uma onda de felicidade e paz me invadiu.

Voltando do banheiro, maquiagem retocada, ela sentou-se ao meu lado. Acendeu seu cigarro no meu, uma inconsciente exibição de intimidade. Após longo trago, sussurrou:

“Seu miserável, maluco!”

“Eu te amo!” Falei.

Fingiu não ouvir, deu outra tragada.

Não tinha noção de que ali começavam os anos mais felizes da minha vida.

Como que para selar essa súbita paixão, pôs em meu pescoço o cordão que usava – um medalhão enorme (uns cinco centímetros de raio), dourado, com um dragão em relevo – e pegou a taça que deixara sobre a mesinha. Tomou um gole.

“Esta é a única bebida que você tem para oferecer às visitas, Chateau Duvallier?” Leu o rótulo.

“Não é tão mal assim. Você pode melhorá-lo usando a imaginação. Sempre uso esse recurso: quando bebo penso que estou nos anos quarenta, num sobrado de Botafogo. Olhando os barquinhos na enseada, ao longe. É sempre verão, um sol generoso pinta a paisagem de um carmim dourado. O ar morno da manhã enche o sobrado com um cheiro de vida...”

“Você é maluco...” interrompeu, beijando-me carinhosamente.

Foi a observação mais lúcida feita naquela noite.