NOS DIAS PARES, ÀS VEZES, CARUSO CANTA

CARLOS ZÜRCK CRUZ - São Cristovão, Rio de Janeiro, 1955. Professor, Pós-Graduado em Artes Plásticas, Artista Plástico e Escritor. "... sou plural, se fosse singular seria CARLO..." 2003 - premiado (1º lugar) no II CONCURSO MUNICIPAL DE CONTO - PRÊMIO PREFEITURA DE NITERÓI; 2005 - premiado (1º lugar) no III CONCURSO LITERÁRIO DA FEDERAÇÃO DAS ACADEMIAS DE LETRAS E ARTES DO RIO DE JANEIRO; 2006 - premiado (2º lugar) no XVIII CONCURSO INTERNACIONAL DE VERÃO (Edições AG).

quarta-feira, julho 18, 2007

TODOS OS OLHOS DA PEDRA

“Eu sou a consciência da paisagem que se pensa em mim.”

Cézanne

, fazia um dia frio como hoje. Você sabe: aqui, em princípios de junho, a temperatura cai durante a madrugada e os ventos locais sopram do mar durante a noite, deixando tudo entorpecido em inércia com sua obscena umidade. Esta rua já foi um rio, você também sabe , portanto um canal aberto até o mar facilitando os arroubos do vento. Uma neblina suave e melodiosa transformava tudo em Debussy : céu, mar ( que se adivinhava, não sem inquietante dificuldade ), a outra cidade ao longe, se confundiam, diluídos no mercúrio da manhã. Só lá pelas nove horas é que um sol tímido faria sorrir em dourado os frutos que outrora – palavra antiga que soa como um pleonasmo de sua própria significação – dominavam toda extensão do rio, em ambas as margens, terra adentro, até cansar a vista saturada de luz: naranga (sânscrito); narrag (persa ); naranja ( árabe ); laranja... Laranjeira, laranjeiras.

As alvas ( outra palavra antiga ) flores, que ainda recusavam transformarem-se em frutos, insistiam em suas exalações e simbolismos. Flores cuja essência, hoje conhecida pelo prosaico nome de água de flor de laranjeira, foi dada a conhecer ao mundo no século XVII pelas, igualmente alvas, mãos de uma princesa italiana de nome Néroli, que então descobrira fórmula e propriedade.

Da sua janela, era essa a paisagem que inundava os olhos daquele menino -- ou era essa paisagem que pensava ver. Ou ainda, a paisagem que desejava ver, isso nunca saberemos – que, tremendo esforço, impedia-os de piscarem. Lágrimas escorrendo-lhe pelas faces, mas ele resistia. Desejava, embora intuitivamente, que a luz gravasse em suas retinas, definitivamente e para sempre, aquela paisagem. Esforço inútil, seus olhos sucumbiram.Após aquele quarto de hora sabia claramente em que se empenhar naquela manhã.

“ Mãe, necessito de uma caixa de sapatos.”

A mãe em seu quarto, distraída – melhor seria dizer ausente-- mais uma vez arrumava jóias e lembranças, fazia-o toda semana, em suas caixinhas de porcelana. Olhar saudoso, como o de quem olha um álbum de fotografias. Olhar fotografias é como olhar o passado, algo tão melancólico quanto arrumar jóias em caixinhas de porcelana. Preciosos momentos da vida de sua mãe reluziam no brilho artificial dessas pedras, também preciosas e desses metais nobres.

As caixinhas eram em número de três – numeral que na cabala judaica (outro pleonasmo) é usado para representar intensidade; ênfase; força. Lembranças muito profundas aquelas da mãe. A que ele considerava a mais bonita, de forma cilíndrica com decoração deutschen blumen na cor vermelha, era um porta jóias fabricado em Dresden , na Alemanha, em finais do século XIX . Nela a mãe guardava pérolas –Talvez umas quarenta – que, segundo uma história que lhe haviam contado, seu pai, já falecido, quando ainda eram namorados, presenteava-lhe. Tantas quanto fossem os dias em que ficassem sem se encontrar. Bem, era essa, enfim, a história que lhe haviam contado, porque não acreditar?

A Segunda tinha a forma trivial de um coração, esmaltada de amarelo Nápoles e decorada com peônias – umas flores da Ásia – em vermelho. Fabricada, talvez, para guardar sementes, raras por estas bandas, dessa mesma flor. A mãe guardava nesta: brincos, pingentes e camafeus. A terceira de forma retangular com inesperados cantos curvos, exibia na tampa uma pintura, monocromática (em azul) de uma estrada com pessoas, casario e árvore ao fundo, em tudo semelhante à pintura oriental , fabricada em Worcester. Delicada, em estilo neo-rococó de fins do século XIX – mais tarde descobriria – onde ela guardava anéis, pulseiras e braceletes. Todo o quarto da mãe – mergulhado em reminiscências de um passado próximo - possuía esse mesmo sentimento de nostalgia, como que singrando pretérita dimensão. Mas não era um quarto mergulhado na penumbra, como facilmente se poderia imaginar, ao contrário, era bem arejado e iluminado como um interior de Vermeer.

“ Pega uma dessas vazias, na sapateira.”

Quando sua mãe se encontrava nesse estado de torpor, cujos motivos ele ignorava, era hora de pedir-lhe coisas. Mormente ( mais uma palavra antiga ) faria um pequeno interrogatório:

“Porque uma caixa de sapatos ? “

“Para que uma caixa de sapatos ?” Etc.

Tudo se guardava em caixas de sapatos ( impressionante como os sapatos acabam e suas respectivas caixas permanecem ): carrinhos de brinquedo, enfeites de Natal, coleções de borboletas, estampas Eucalol, boneca de celulose, soldadinhos de chumbo. A mãe nada perguntou-lhe, suponho que aquelas suas ausências se tratavam de uma forma de pugna contra a certeza da morte, e ele embora muito criança, apreendera a manipular bem esses momentos.

Naquele instante sua tia, irmã mais nova de sua mãe, principia ao piano, que ficava

na sala de jantar, uma música que ele julgava ser o Tango Brejeiro de Ernesto Nazaré, com muita graça e habilidade. Uma vez por mês essa mulher muito frágil, pálida e delicada – que mais tarde viria a ser sua professora de piano – vinha visitar sua velha mãe e passava a noite lá. Sempre lhe sobrava tempo para um pouco de exercício de piano, o que agradava a todos, a começar pela própria avó.

A sala ampla, assoalho de parquet em ziguezague tipo húngaro, era dominada pela

mesa de jantar antiga, pesada e bela, cujos pés eram constituídos por um só bloco cúbico de madeira: gonçalo-alves; ou chibatã; ou mirueira - onde haviam sido entalhadas, em seus quatro cantos, quatro exuberantes, e bastante realistas, patas de leão em tamanho natural – escurecido com vieux - chene e envernizado. Ao seu redor, dez cadeiras de espaldar alto e braço que nunca, pelo menos ele não havia visto, haviam sido usadas, todas, de uma só vez. A avó arrastava uma delas – arrastar é um modo de se dizer. A avó era uma senhora determinada e enérgica, mas também bastante delicada e sensível – para próximo do piano, e ali ficava imóvel, e em absoluto silêncio, todo o tempo que o exercício durasse.

Além da mesa e do piano via-se alguns quadros emoldurados: na parede do lado esquerdo - onde estava também a cristaleira com todos os serviços de jantar, de chá, de café, taças, etc. - uma paisagem à óleo ( um riacho, visto do alto, entre árvores , com duas crianças sobre uma pedra pescando ) ao estilo impressionista; do direito, dois pequenos pastéis, paisagens também (uma, um moinho com azenha, outra um prado, até o horizonte, ladeado por plátanos, onde pastam algumas vacas); na parede da frente fotos em preto e branco, antigas, de familiares da avó (uns seis caixilhos); e na parede oposta uma Natureza-morta com cerejas, a óleo também , de estilo acadêmico, muito graciosa. Esses objetos, sempre vívidos, como consideraria Cézanne, pareciam dizer entre si – numa infindável melopéia – infinitas e inescrutáveis revelações secretas. O piano de armário; os pratos; travessa e jarra – com melífluas paisagens imaginárias, como motivos decorativos, em azul com detalhes dourados - de porcelana inglesa ( pearl ware ) Spode’s tawer, sobre ele; o gramofone e o relógio de parede, davam o tom definitivo de sofisticação àquele ambiente, bastante propício e acolhedor para receber amigas, coisa que a avó já não mais fazia. Suas amigas já haviam morrido ou encontravam-se muito velhas para saírem de suas casas. Que, aliás, pareciam haver sido projetadas meticulosamente para receber visitas, amigos e amigos íntimos , nessa ordem. Na varanda, na sala de estar e na sala de jantar.

A gambiarra já havia conseguido, agora era pegar os velhos negativos- um patrimônio da família- que a avó guardava também em uma caixa de sapatos, centenas deles. Pessoas que desconhecia mas gostava muito de admirar, inclusive os avós paternos, o avô materno e o próprio pai, lá estavam eternizados.

O engenho tinha a simplicidade que todo grande invento porta. Consistia em uma caixa de sapatos, da qual já se falou, com um furo em uma das extremidades no qual ele introduzira um cilindro de papelão com uma lente de aumento, que havia ganhado quando iniciou sua coleção de selos. No lado oposto, a lâmpada e entre eles, na tampa da caixa, uma ranhura por onde fazia passar os negativos da avó, um a um, que como num milagre, acendendo-se a luz, se projetavam numa das paredes de seu quarto, onde se encontrava nesse momento, muito ampliados. Permaneceu, ali, horas trocando imagens e imaginando histórias. Havia inventado o cinema.

Depois chamou os colegas da escola e exibiu-lhes as projeções, enquanto contava as histórias e, naquele mundo de penumbra e ilusão, inventava mundos movidos por sonhos, onde cabiam outros mundos ou mundos às avessas. E todos saiam de tal forma assombrados com o que haviam visto e ouvido que voltavam no dia seguinte acompanhados de outros colegas. As primeiras sessões foram gratuitas, mas o fascínio da novidade fez aumentar progressivamente a presença de garotos – primeiro da rua de trás, depois das outras ruas, em breve de todo bairro, que acorriam as sessões por ouvirem falar do maravilhoso engenho – e em tal proporção que ele passou a cobrar uma moeda, que era depositada no cofrinho. E eram tantas moedas que lhe permitiu promover melhoras em seu invento. Comprou dezenas de discos 78RPM (artistas que admirava, como: Carmen Miranda com Mário Reis e Diabos do Céu; Sílvio Caldas; Ciro Monteiro; Aracy de Almeida com conjunto regional ou com Luiz Americano; Moreira da Silva com o conjunto Gente do Morro; Anjos do Inferno; Ataulfo Alves e suas Pastoras com orquestra e coro; Trio de Ouro; Roberto Paiva; Luiz Barbosa com Boêmios da Cidade; João Petra de Barros com Custódio Mesquita; Quatro Ases e um Coringa e Haendel; Boccherini; Schubert; Mussorgsky; Stravinski; Dvorak; Beethoven; Mozart; Chopin; Mendelssohn; Liszt; Brahms; Verdi; Donizetti; Mascagni; Leoncavallo; Tchaikovski; Saint-saëns e Bach, seu preferido ) , instalou o gramofone da avó – com seu consentimento, claro -- em seu quarto , e passou a colocar música enquanto contava a história, inventando, assim, o cinema sonoro.

A cada dia uma história diferente e negativos diferentes, que preparava na noite anterior. Às vezes eram três sessões cada tarde, com histórias, música e negativos diferentes. Certa tarde, a mãe intrigada com toda aquela movimentação no jardim – e aquilo já fazia alguns meses -- resolveu conferir o que se passava. Ele não a deixou entrar. Marcou com ela para o dia seguinte e suspendeu as sessões para os colegas.

A sessão do dia seguinte dedicou-a exclusivamente a mãe -- que se apresentou vestida para a ocasião e com seu chapéu de melusina -- e contou a mais linda história que jamais alguém havia ouvido , ou tornaria a ouvir, ali. A música que escolhera, como trilha sonora, foi o segundo movimento do Concerto para dois violinos e orquestra em ré menor, de Bach -- seu preferido -- e a história, que criou, a de um pobre pescador que havia vivido a muito e em tão remotas terras do Pacífico Norte e que, por ter salvo o Rei, durante terrível tempestade no mar, da morte certa, ganhou de uma fada-do-mar uma ostra encantada que todo dia, pela manhã bem cedo, vinha até a praia e lhe trazia uma linda pérola, produzida durante a noite, que ele levava de presente a sua amada, que vivia do outro lado da cidade, quando de sua visita. E isso era coisa tão certa que o número de pérolas era, exato, o número de dias que ele passara sem vê-la. Assim eram felizes, assim o tempo passou. Mas certa manhã de um dia triste ele encontrou a ostra morta. Uma cansanção havia-lhe roído a ostra encantada.

A mãe, naquela sua lentidão, naquela aparente serenidade, comoveu-se às lágrimas e ainda mais e tanto quando entre as imagens projetadas pode vislumbrar um negativo do marido falecido. Quando se recuperou, um quarto de hora depois, beijou-lhe carinhosamente e desejou sucesso ao seu invento.

Mais tarde ainda ele resolveria pintar com sua aquarela os negativos e também inventava o cinema a cores.

Mas isso foi há muito. Depois a mãe morreu de Mal de Parkinson -- doença da qual, até então, nunca ouvira falar -- o que explicava aquela letargia e lentidão, aquela aparente serenidade da mãe. Ela, em verdade, já se encontrava doente havia muito tempo.

A prolongada doença da mãe levou a família a vender a casa – juntamente com o piano, os quadros, as porcelanas, as jóias e os porta-jóias -- e mudarem-se para uma bem mais modesta. Por esta época foi que o conhecemos, em uma das concorridas sessões de filmes Super 8 pornográficos dinamarqueses -- de uma incomensurável tristeza, como de resto são todos os filmes pornográficos -- que desconheço como conseguia, e passara a exibir em seu quarto, cuja janela dava para a rua. Usava um pequeno artifício: passava com dois colegas e comunicava a avó que iam jogar xadrez ( uma das suas ocupações prediletas -- mais tarde substituiria pela obsessão dos paralelepípedos – depois do piano ), posteriormente abria a janela ( que dava para a rua ) e deixava entrar mais uns seis ou sete que era a lotação total por sessão. Era assim que se sustentava.

Morrer-lhe a tia -- com quem havia estudado piano – de absoluta tristeza, poucos meses depois da mãe, foi o golpe definitivo. Passou a freqüentar a Zona na Pinto de Azevedo -- do lado direito de quem descia a Presidente Vargas e oculta parcialmente por um out-door da Coca-cola com a irônica frase de chamada Coca-cola é isso aí ! -- abduzido por aquela sordidez, aquele lodo, a fedentina de urina e perfume da Coty, cachorro-quente da Geneal com Sustincau, Angu do Gomes, aquelas mulheres alquebradas -- excessivamente gordas ou em doentia magreza, nunca mulheres normais -- e suarentas , circulando na rua em calcinhas e sutien, gesticulando suas habilidades e perversões, na busca desabrida por clientes e sustento e as músicas de Roberto Carlos e Paulo Sérgio, cada vez mais. Uma vida muito diferente daquela escorreita que vivera com a mãe, a tia e a avó mas que também não havia resguardado nem a mãe, nem a tia --e provavelmente também a ele -- da morte prematura .

Por essa época tentou trabalhar também como pianista da Boite Dunga -- a população local chamava de inferninho -- mas nunca conseguiria. O gerente, sujeito de baixa estatura e sobrancelhas espessas, sempre com o mesmo livro de J. G. de Araújo Jorge nas mãos, alegava que o tipo de música, muito sofisticada, que tocava não era própria para aquela casa onde garotas faziam striptease e “a bruma púrpura da concupiscência a todos levando de rojo a um estado animal “ , etc. Além de já contarem com uma banda fixa , cujo crooner era um travesti -- que imitava muito bem Shirley Bassey , diga-se de passagem – e que tinha um grande saxofonista, com experiência internacional, aficionado por Charlie Parker e que fazia um grande sucesso, nas jam session, ao final da noite, no local. Bem, o que conseguiu foi um contrato, com o Chalezinho piano bar, onde fez constar dois itens dos quais não abriria mão nunca: sempre tocar uma composição sua e Danúbio azul, pelo menos uma vez por noite. Apesar da vida que levava, o que ganhava com a exibição dos filmes pornográficos e no Piano bar era o suficiente para seu sustento. Com toda certeza a freqüência com que ia à zona o havia posto doente. Não tenho notícia de qual doença venérea o acometera, mas acho que era a sífilis. Talvez a mais difundida geograficamente no mundo -- ao menos o ocidental -- haja visto a quantidade de adjetivos pátrios pelos quais é conhecida: mal-americano, mal-canadense, mal-céltico, mal-da-baía-de-São Paulo, mal-de-nápolis, mal-malês, mal-escocês, mal-francês, mal-gálico, mal-germânico, mal-napolitano, mal-polaco, mal-turco, mal-ilírico. Nem mesmo o fato de ser Santo católico, em determinado período, pelo menos, livrou alguns deles dessa doença, pois seus santos nomes vieram também a denominá-la: mal-de-Santa-Eufemia, mal-de-São-Jó, mal-de-São-Névio, mal-de-São-Semento. Estes seriam, provavelmente, os primeiros atacados, que se conhece, entre os religiosos. Mas de tal forma o mal deve ter se difundido entre eles que se passou a usar o epíteto genérico de mal-dos-cristãos. Mas mesmo a hipocrisia humana tem limites, outros termos, pelos quais também é conhecida a doença, não escondem que se origina na vida dissoluta, libertina, promíscua enfim: mal-de-coito, mal-de-franga, mal-de-frenga, mal-venéreo.

Sífilis era o que o acometera, mas continuava gentil como sempre fora. Quando cismava ia à escola, tocava Danúbio Azul e se retirava. Os garotos gostavam e, apesar de aterrorizados pelas histórias que lhes contava, tinham-no como um estranho ídolo.

* * *

“Se tenho gosto, é quase só pela

terra e pelas pedras.”

Rimbaud

Naquela noite, véspera de Natal, no Chalezinho, tocou Danúbio azul - suspenso no tempo e em áspera solidão, como que entorpecido pelo seu ( da canção ) lento mistério -- com delicada e expressiva sonoridade, como nunca antes havia feito, e com uma exuberância aveludada, serena e deliciosamente sonolenta, insinuante e granulada como a chuva que principiava lá fora. Com alguma felicidade, talvez. Um sutil vestígio de ansiedade crispava-lhe o lado esquerdo do rosto, como um tique nervoso, que lhe erguia o canto da boca num espasmo. No bar fez-se um silêncio sedoso.

Ele, alheio às misérias da existência, mergulhado numa dimensão sem passado, sem futuro, sem medo e sem desejo. Como que a eternidade (próxima, depois se saberia), soprando-lhe nos dedos, lânguidos como os de um assassino, faziam deles instrumento de uma sonoridade líquida, maliciosa e lasciva, plena da tragédia do irrealizável. Todos os presentes, num misto de enleio e assombro, perceberam a ponto de, ao final da apresentação, aplaudirem com entusiasmo. Ora, algo de anormal se avizinhava. Nunca ninguém vira aplaudirem o pianista num Piano bar.

No dia seguinte, um dia chuvoso de Natal, tomou formicida com guaraná Princesa e morreu dentro de casa, em presença, apenas, e para seu desgosto, da avó que , desorientada, abriu portas e janelas e pôs o velho 78 rotações, com Caruso cantando Passione, para tocar no gramofone. A casa encheu-se de melancolia, vizinhos e de todos os garotos do bairro que entravam, olhavam-no por um breve instante e saíam, com o semblante estranhamente mais aliviado do que quando haviam chegado. Como que a visão daquele homem jovem, muito pálido, deitado no chão de tacos --parquete em espinha de peixe-- da sala , vestido com seu paletó, de linho azul, gasto; sapatos bicolor e cabelo à príncipe Danilo, gomalinado e penteado cuidadosamente, e de expressão serena e mãos de assassino, ossudas e lânguidas, dirimisse alguma incerteza secreta surgida entre eles.

Segundo a avó -- se é que ainda se pode confiar na sua razão -- , que foi a única pessoa que assistiu ao seu termo, morreu recitando Rimbaud, como que em oração, baixinho: “ Um dia talvez ele desaparecerá maravilhosamente; mas é preciso que eu saiba, se deve subir a um céu, que assista um pouco à assunção do meu amiguinho!”

Em seu quarto, quando a distância de sua morte permitiu fazê-lo, foram encontrados entre seus pertences, além da centena de paralelepípedos que colecionava compulsivamente, “por terem em sua superfície brilhosa pontos cintilantes como olhos de um felino”, como sempre justificava; uma pauta musical e uma carta, que não conseguira enviar. Nada, pelo menos aparentemente, que justificasse seu gesto extremo.

A pauta musical tinha o curioso e sugestivo título de THE CATCHER IN THE RYE BLUES :