NOS DIAS PARES, ÀS VEZES, CARUSO CANTA

CARLOS ZÜRCK CRUZ - São Cristovão, Rio de Janeiro, 1955. Professor, Pós-Graduado em Artes Plásticas, Artista Plástico e Escritor. "... sou plural, se fosse singular seria CARLO..." 2003 - premiado (1º lugar) no II CONCURSO MUNICIPAL DE CONTO - PRÊMIO PREFEITURA DE NITERÓI; 2005 - premiado (1º lugar) no III CONCURSO LITERÁRIO DA FEDERAÇÃO DAS ACADEMIAS DE LETRAS E ARTES DO RIO DE JANEIRO; 2006 - premiado (2º lugar) no XVIII CONCURSO INTERNACIONAL DE VERÃO (Edições AG).

quarta-feira, julho 18, 2007

OLHOS OBLÍQUOS, LÍMPIDOS, TRANQÜILOS, ALARMANTES

Vou lembrar-me da minha música de cordas na noite; vou preocupar- me com o meu coração, e meu espírito fará uma busca cuidadosa.”

Salmos 77:6

“O tempo vence toda ilusão.”

Bosco-Blanc

, lá pelas dez da manhã a notícia: ele havia praticado o haraquiri – os japoneses usam mais comumente sepuku. Naquela noite fez lua cheia. O plenilúnio vestia tudo de um azul metálico. Todas as coisas, em suas sombras reduzidas, murmurando. A noite sempre revela o que o dia ocultou. O luar cheirava ao jasmim-manga. Hoje tenho a impressão que mesmo aquele italiano cego – o avô do relojoeiro – ainda assim, era capaz de perceber, por aquele perfume, ser noite de lua cheia.

Jasmim-manga : O bonsai ao lado direito do pequeno do corredor, fazendo-nos uma reverência solene, grave e contida e, em tudo, punha aquele cheiro adocicado e úmido de luar.

Eu havia ajudado o sogro do pastor a chegar ao quarto andar, o prédio não possuía elevador e ele estava bêbado, como sempre, para alcançá-lo sozinho. Devia ser bastante velho, mas aparentava um vigor incomum. Cabloco, roupa de brim cáqui, cigarro de palha de milho. A pele, de velho pescador, muito enrrugada e morena contrastando com os cabelos em ondas, cheio e branco: cúmulos. Registros

de toda uma vida dedicada ao mar. Sempre que bebia, o que não era raro, vinha visitar a filha casada com o pastor da Assembléia de Deus – ele, o pastor, até me havia levado uma vez, para assistir a um culto. Eu era criança e havia gostado muito. A música era ótima. Havia uma banda, com uns dez caras: trumpetes; trombone; contra-baixo; guitarras; bateria; sax; piano; etc. Um som incrível, soul music eu acho. Uma negra gorda cantava uma versão, em português, de Praise god I'm satisfied, com uma alegria exuberante, uma felicidade indescritível. O que pra mim, por si só, já comprovava a inequívoca existência de Deus. Na época fiquei bastante animado em relação a religião e tal - e que, a mim sempre pareceu, tinha um bom trânsito junto ao consulado norte americano dado as quantidades de latas de leite em pó, que tinha em casa, com o selo da Alliance for Progress Aquela proposta do JK, o nosso, que foi lançado pelo JK lá deles com o objetivo de apoio ao desenvolvimento econômico da América Latina. Bem, com as ditaduras que se implantaram, na época, nos países latino-americanos ( para as quais, progresso econômico e justiça social não combinavam ) óbvio, extinguiu-se --. Na verdade, o pastor tinha muitos filhos, uns seis talvez, e acho que isso basta para justificar as latas de leite. Ao menos na casa do pastor havia justiça social.

Quando nenhum de nós ajudava o sogro do pastor, ele ficava ali estirado no chão à entrada do prédio, tentando acender seu cigarro de palha, murmurando uma cação que falava de mar: “ O mar... / Pescador quando sai / Nunca sabe se volta / Nem sabe se fica... / Saveiro partiu de noite, foi / Madrugada não voltou / O marinheiro bonito / Sereia levou...”(Caymmi, provavelmente), ou dormindo com um sorriso maroto nos lábios como que saboreando por antecipação a contrariedade do genro, para o qual o senso de tempo era bidimensional: futuro e passado – a rigor unidimensional: o paraíso que houve é o que haverá. A glória antiga ( original), que foi destruída pela corrupção, e a glória prometida que voltará após a grande purificação. A luta é por libertar-se do presente, destruir o presente. A negação do presente é a autonegação. O presente, uma nódoa na eternidade que deve ser apagada (com sangue ou fogo, ou o que for preciso) da realidade e da memória. Portanto é forçoso, haver uma distinção entre o sagrado e o profano ( o presente, o eu: foco do sofrimento) que deve ser totalmente eliminado. Somente assim o círculo se fecha e o elo, passado ( anterior ao nascimento ) e futuro( após a morte ), será reparado. A era anterior ao nascimento e após a morte são idênticas: abolição do eu, abolição da realidade. Terrível atemporalidade, cuja essência se encontra além da vida, em oposição a ela: “ Meu reino não faz parte deste mundo”. A luta contra todo o mundo presente em nome do passado e do futuro. Condenado a existir dentro de um constante clima de medo, perseguição e suspeita; para que o presente e suas tentações não se infiltrem no âmago da redenção ( destruição do eu). E assim a vida se esgota. A autonegação substitui o respeito. Obediência em vez de participação. Sujeição no lugar de fraternidade. Suspeita no lugar da dúvida, tortura no lugar da alegria. Repressão no lugar de saudade, “imortalidade” em vez da vida. E o corpo um fardo – embora passageiro – que somos obrigados a suportar. Uma prova que temos que agüentar, um castigo que estamos destinados a suportar para nos libertarmos dele. Um bloco de poluição presente, exprimido em sua imperfeição entre a pureza do passado e o esplendor do futuro - ambos abstratos: pureza e esplendor. Portanto é necessário despojar-se da da corporalidade, aniquilar o corpo. Por isso “Tu és pó e ao pó voltarás”. Como havia escrito, em suas anotações, Alexander A. Guideon .

É claro, sabia disto tudo não como um fruto sáfaro – hoje se diria trangênico - de solitárias elocubrações filosóficas ou insones reflexões intelectuais. Sabia tudo isso intuitivamente. O mar, seu bramido e seu luxo azul turquesa, o havia ensinado. E as vagas; o sal e as marés; rumos e rotas; a borrasca; os ventos e a rosa dos ventos; os pontos cardeais; a bússola e o sextante; correntes; cordas; nós; o sol e as luas; a paixão, não se encontram nem no passado nem no futuro, senão no presente. Toda sua sabedoria e sua existência, havia destilado ao mar.

O mar, passado, presente e futuro, era seu paraíso e a coisa mais certa de todas as coisas não vale um caminho sob o sol, como futuramente viria a dizer o poeta.

É óbvio; vinha com o claro propósito de mostrar ao pastor, seu genro, os prazeres inalienáveis da existência humana.

Já havia deixado o velho na porta do apartamento da filha. Bati forte na porta e desci correndo a escadaria. Era possuído então – e ainda agora sinto – por uma absurda vergonha na prática da caridade. Acho que o próprio Cristo percebia isso pois determinou que a praticássemos às escondidas: “...Quando fizeres dádivas de misericórdia, não deixes a tua esquerda saber o que tua direita está fazendo...”

Ao chegar ao térreo, um fato extraordinário aconteceu: uma estranha música, melodiosa, doce, úmida como o luar, invadira o corredor. Quando dei por mim, me deparei embevecido em meio àqueles estranhos e maravilhosos sons, investigando o ar, atônito.

A porta do apartamento dos fundos estava entreaberta, de lá vinham todos aqueles sons. Como que hipnotizado por aquela lúbrica harmonia, entrei.

Penumbra.

Do lado direito do pequeno corredor, sobre uma mísula, um Bonsai, saudando-me com uma solene, grave, contida reverência: jasmin-manga. Ao lado esquerdo, pouco mais a frente, duas máscaras do teatro Noh – mais tarde descobriria – formando um triângulo escaleno, e isso parecia proposital, com o bonsai. Uma, muito realista, onde a figura, um tanto andrógina, sorria um riso exato de satisfação que se irradiava por todo rosto, por assim dizer , de forma natural, agradável e cativante.

Por um tempo, que não sei precisar, fiquei, ali na penumbra, à observá-la. Não conseguia desviar meus olhos dos olhos rasgados, oblíquos, límpidos, tranqüilos, alarmantes – tudo acentuado pelo sorriso – da máscara, tal a sua beleza e desconcertante similitude a um rosto real.

A outra era monstruosa, causando-me sentimentos opostos. Não conseguia fixar o olhar, tal o incômodo que me causavam aquelas sobrancelhas arqueadas e a boca num esgar grotesco, lembro pouco seus detalhes. Muito mais tarde entenderia aquela referência à tragédia e a comédia humanas.

“ Estava - lhe esperando.”

Uma voz suave, ligeiramente anasalada, com uma entonação estranha mas agradável, chegou-me aos ouvidos saída daquela penumbra misturando-se aos maravilhosos sons , tirando-me do estupor em que as máscaras me haviam posto.

No fundo da sala , que permanecia em suave penumbra, sentado no chão – na verdade sentava-se sobre um zabuton, pequena almofada quadrada e achatada – um velho japonês, de quimono, onde predominava o branco, tendo atrás de si um biombo de fundo negro decorado com grous (tsuru); pinheiros (matsu ) e nuvens entalhados e pintados em cores vivas, realçadas de dourado – Laca de Coromandel que emoldurava-lhe a figura.

Dedilhava com três plectos, colocados nos três primeiros dedos da mão direita, uma espécie de cítara, com longa caixa de ressonância e treze cordas de seda de onde extraia os maravilhosos sons que me haviam atraído ali.

Mais tarde me explicaria, com aquele jeito estranho - ora arrastado em algumas palavras, ora abrupto em outras – de falar, que era o koto, um instrumento de intelectuais no Japão, e que aquela era um tipo de música destinada apenas a esse instrumento e que se chamava danmono, surgida por volta do século XVII e que aprendera a tocar com o pai, um pescador de Nagasaqui – cidade onde também

Nascera em l878 – e que, mais tarde me contaria, havia morrido – ele não havia ainda completado dez anos – por ter caído ao mar quando tentava regressar a casa, após uma noitada de bebida e farra no cais do porto, o que fez-me lembrar, de imediato, o sogro do pastor.

À sua frente o que me parecia uma mesa baixa, na verdade um kotatsu. Sobre ela, no terço direito, em um vaso de porcelana imari - que os japoneses chamam arita , decorado com motivos florais azul, vermelho e laranja sobre fundo branco- um ikebana com flores brancas de jasmin-manga, espalhando seu suave cheiro de luar por toda a sala. No centro da mesa, o que me pareceu um pequeno bule redondo com um longo cabo de madeira, uma tigela e dois pequenos copos de porcelana esmaltados de branco com um ideograma pintado em preto. O biombo, que servia como quebra-luz, impedindo que a luz crua do dia, que vinha do pequeno jardim de inverno – com troncos de árvores, pedras, terra e musgo – contíguo a sala, atingisse de forma violenta os olhos de quem entrava pela porta principal, na outra extremidade. Ocultava também uma espécie de claviculário, fixo na parede, onde repousavam três espadas de diferentes comprimentos.

Tentei um pedido de desculpas mas não atinava com as palavras, tal o estado de estupefação em que ainda me encontrava.

Repentinamente, cessou o dedilhado e os últimos acordes foram desaparecendo lentamente e tudo ficou em silêncio, acentuado pelo perfume das flores. Ficamos ambos, absolutamente imóveis, na penumbra. Não sei precisar quanto tempo, mas não foi pouco. Meus sentidos, agora privados do som, concentravam-se nos olhos e no nariz: o cheiro do jasmim-manga, a pouca luz e as cores no fundo da sala, que aos poucos foram ganhando um aspecto bidimensional e quase abstrato, lembrando um cenário pintado por Larionov para o sexto quadro de O Bufão, de Procofiev, que havia visto num filme na aula de artes e me impressionara bastante por sua deslumbrante beleza, principalmente o contraste dos violetas e amarelos predominantes.

“Música é silêncio, e silêncio é música.”

Disse suave e lentamente o velho japonês. Aquela frase acabava de reafirmar, também, o som das palavras como música.

Não sabia o que lhe dizer diante de tão, para mim, desconcertante afirmação. Acho que falei qualquer coisa sobre intervalos de silêncio entre áreas, na música clássica, que a mim se assemelhavam a pontos parágrafos num texto, John Cage etc. Ele não me deixou terminar, o que para mim foi muito bom. Não sabia em absoluto o que estava dizendo, tudo me havia ocorrido naquele mesmo instante. Tentava desesperadamente manter um diálogo.

“Tentar revelar esta pequena porção do mistério da existência que é música e silêncio, aplicando a lógica, conhecimento erudito e experiência, é um esforço totalmente inadequado.” Afirmou sem nenhuma agressividade, dirigindo-se a mim com surpreendente familiaridade. Permaneci calado.

“Música e silêncio constituem lados opostos mas que, ao mesmo tempo, se complementam. Observa-se esse fenômeno também com as cores.”

Continuava calado.

“Música para um, pode ser silêncio para outro. Só percebemos o silêncio porque há música e vice-versa afastando-se ou convergindo.”

“Mas isso não é lógica?” Pensei, mas só pensei. Sentia-me suficientemente intimidado para arriscar dizer-lhe algo.

“Sim pode parecer que uso a lógica, o conhecimento e a experiência, do seu ponto de vista.” Disse, como se houvesse lido ou ouvido meus pensamentos, fazendo um gesto lento com a mão como que pedindo calma.

“ Não há nenhuma contradição no que afirmo. Apropriamo-nos dos significados da existência através de meios primários: olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo e idéia.”

Para ele não havia distinção entre razão e emoção, você se emociona, você aprende. Começava a entender-lhe o raciocínio.

“Sabe qual a maior estupidez cometida no ocidente?” Fez uma pausa.

“Quando alguém afirmou que existia porque pensava e tão somente.” Ele mesmo respondeu.

“Razão e emoção não se dissociam, somos um organismo sensorial.” Mais uma vez parecia ler meus pensamentos, cada vez tinha mais certeza disso.

“Os sons, como os silêncios são fenômenos físicos e como tal inspiram emoções: sons agudos, vitalidade; sons médios, equilíbrio, justiça; sons graves, respeito, grandeza; silêncio, pureza, profundidade. Sem pureza ou profundidade não há vitalidade, nem equilíbrio, nem justiça, nem respeito, nem grandeza.”

Serviu-se do que eu acreditava ser um bule e, cerimonioso, gestos contidos, pôs uma quantidade de água quente numa tigela (suribachi) que continha o que me parecia um pó e bateu a mistura com uma espécie de pilão ( surikoji ) até que ficou espumante e serviu nos pequenos copos que na verdade, percebia agora, eram xícaras.

Ocha ?” Perguntou.

Depois soube ser chá verde. Verde porque as folhas não sofrem fermentação.

“Sente-se.”

Sorveu com cuidade e prazer o líquido fumegante. Sentei-me e pus-me a beber o meu. Um sabor interessante, sem doce, leve e consistente. Que me era completamente desconhecido. Muito diferente do que eu conhecia como chá. Na verdade o que eu conhecia era o chamado chá preto, kocha para o meu inesperado amigo.

Um dia, um pouco mais tarde, me explicaria que a cerimônia do chá ( chanoye ) havia surgido uns oitocentos anos antes no Japão. Era utilizada pelos monges budistas para ajudá-los a se concentrarem durante a meditação. O que me pareceu muito apropriado àquele momento.

“ Meios primários fazem com que apropriemo-nos dos significados da existência.” Voltou a afirmar com aquela fala pausada, provavelmente como um monge budista falaria. Penso que sim.

“ Pense em você nesta manhã: ouviu a música, entrou neste universo que considerava, até então, estranho. Viu o bonsai, as máscaras, o colorido da decoração do biombo, o ikebana. Sentiu o perfume sutil do jasmim-manga e agora provou ocha. E neste momento pensa sobre tudo isto que digo...” Disse com grande serenidade.

“Perfeitamente, entendia perfeitamente onde queria chegar: viera a aprender tudo aquilo mais com os sentidos do que com a razão, ele vai dizer isso.” Pensei.

“... aprendeu tudo sobre esta casa. Aprendeu sentindo, sentiu aprendendo. Este universo, agora, perdeu sua estranheza.” Voltou ao ocha.

“Não falei?” Pensava comigo mesmo, um tanto desconcertado. Teria preferido ouvir algo que a mim não houvesse ocorrido, algo inusitado, algo surpreendente enfim.

Ainda permanecemos sentados, olhando as xícaras, seu conteúdo âmbar-amarelado e o delgado fio de fumaça branca que produzia desenhado, por assim dizer, ideogramas no espaço entre nós. Terminando o chá, levantou-se e para a minha surpresa, tirou do interior do quimono fósforos e um maço de Caporal Amarelinho. Retirou um cigarro. Bateu uma das extremidades contra o maço várias vezes. Acende-o e deu uma interminável tragada.

E eu que, naquela altura, pensava haver encontrado um sábio de folhetim, um guru. “ Graças a Deus, era apenas um homem comum.” Pensei. Um homem comum mas, muito especial com quem passaria a conviver, mais ouvindo do que falando, por um pouco mais de dois anos.

Aquele velho japonês nascera em Nagasaky ,ainda na era meiji - governo esclarecido - período da industrializacão do Japão, Natsuhito era o imperador. Seu pai tinha vinte e cinco anos de idade e sua mãe dezesseis. Aos cinco anos inicia estudos de Coto com o pai que vem a falecer tragicamente em 1887. O mar entrara definitivamente em sua história com o seu aspecto mais sinistro. Não sabia então que sua existência seria marcada pela tragédia, essa seria só a primeira, mas não a última. A mãe, jovem viúva, voltou a casar-se após três anos de luto, talvez menos por companhia do que por necessidades financeiras. Mas ele nunca viria a ter um bom relacionamento com o padrasto, homem violento, que não bebia, nem fumava, como seu pai. E também não era músico, nem alegre. O que fez com que ele, aos dezenove anos, para desespero da mãe, fugisse de casa, indo tentar a vida sozinho embarcado. Anos depois, apaixonado, casa-se. Contava vinte e três anos. Ainda trabalhando em navios de pesca, vê nascer sua primeira filha em l902 e em l905, a segunda. Em l9l0, cansado da vida no mar, que o obrigava a ficar longe da família muitos meses no ano, resolve mudar-se para Osaka e tentar encontrar trabalho na indústria têxtil. Segundo ele, o período mais feliz da sua vida. Nessa época ele compra uma máquina fotográfica ( Mamia ) que vai tornar-se, depois da mulher e das filhas, sua grande paixão.

Veio a primeira grande guerra na Europa, Yoshihito era agora o imperador, e a tragédia abateu-se outra vez sobre sua família: sua mulher e a filha mais velha morrem no grande terremoto de Tóquio, ocorrido em vinte e três, quando visitavam parentes nessa cidade. Nunca se recuperaria dessas perdas . Em l925, sua filha mais nova se casa com um engenheiro naval que resolve, em l927, viajar para o Brasil – uma vez no brasil trabalhará como fotógrafo até aposentar-se – ele a acompanha. Um ano antes o imperador Hiroito assume o poder e prenuncia uma tragédia nacional, confirmada, menos de vinte anos depois, com a desgraça de Hiroshima e Nagasaque .Quando sua mãe, que não via desde 1910, morre na explosão atômica, ponto final na aventura fascista do Japão na Segunda Grande Guerra . Nunca mais voltaria ao seu país.

È claro, não contou-me como faço agora. Isto foi resultado de longas conversas durante o tempo que convivemos. Nesse breve tempo ainda me contaria do aki (outono); fuyu (inverno); haru (primavera ) ; shoka (começo do verão); Natsu (verão); manatsu (auge do verão); tsuyu (estação das chuvas). Das \histórias de Genji, romance épico antigo; do Livro de cabeceira de Sei Shogan, obra clássica sobre a vida na corte; do man’yoshu, antologia de poesia clássica. Da hanami, festa para ver as flores – as da cerejeira (sakura) representam a beleza efêmera; do kodomono-hi, dia das crianças; do shichi-go-son, quando meninos e meninas são levados a um templo para orarem pela sua saúde ; do tanabata, festival das estrelas; o shogatsu, Ano Novo, ocasião mais festiva, quando se come macarrão – símbolo da longevidade – com a família; do bunraku, teatro tradicional de bonecos. Da ukiyoe, xilogravura impressa em washi, papel feito a mão. Tudo isso me encantava sobremaneira.

Uma tarde, princípio de agosto - mês do cachorro louco- , voltava do cinema, o Fluminense, ali no campo de São Cristovão . Fora ver The Eddy Duchin story – que aqui ganhou o título de Melodia imortal, com Tyrone Power como Eddy, porque minha mãe sempre elogiara esse filme (menos pela qualidade da fita, do que pela presença do Tyrone) e por causa da trilha sonora, To love again, baseada no Noturno, opus nº9 – nº3,2, em mi bemol maior de Chopin, compositor que me agradava bastante. A mim me pareceu que o diretor, ou o roteirista, tentou um paralelo entre o pianista, cuja história o filme aborda, e o compositor. De semelhança entre os dois apenas a paixão ela música e a tragédia da morte prematura. A história de Chopin é muitíssimo diferente. Chopin era um exímio dançarino e habilíssimo em jogos de sociedade, talvez um tanto esnobe, mas, seguramente, mundano e sedutor. Nunca teve problemas com dinheiro. Surgindo dificuldades, aparecia a mão generosa de uma admiradora rica, de uma antiga aluna, ou as duas coisas. Não o constrangia essa vida fácil, ao contrário, amava essa vida porque garantia a segurança que precisava para compor. Permitia-lhe criar com toda liberdade - liberdade aqui em seu total sentido, inclusive resguardando-se de qualquer influência. Muito diferente da personalidade e do caráter de Eddy Duchin, quase um bom moço diante de Chopin. O que me agradava ,então, em Chopin era ele haver inventado tudo em sua música, que, nesse sentido, era pura. O que almejava quando compunha era menos uma obra- prima do que uma obra original. Deu aos seus estudos soluções apaixonantes, com inesgotável sentido poético. Seus prelúdios, hai-kais prodigiosos. Me agradava também sua predileção pelas formas simples e breves que estimulam a imaginação, seu rigor e simplicidade constantes. Tudo em sua obra parece de inspiração imediata, de arrebatamento e espontaneidade. Mas o filme também era bom. Minha mãe tinha razão, Tyrone Power estava impecável.

Fazia um friozinho excitante. Havia chovido um pouco à tarde, mas agora um sol suave banhava tudo com uma luz leitosa. O sogro do pastor não estava mais caído à entrada do prédio, como quando eu havia saído para o cinema. Fazia bem uns três dias que não via meu amigo japonês, resolvi visitá-lo. A porta, como sempre, entreaberta. Entrei. Era inevitável, a lembrança daquele primeiro dia sempre me ocorria. Misteriosamente a sala encontrava-se a sós, apenas aquela penumbra suave como um tênue vapor, mas escutava vozes. Encaminhei-me ao pequeno jardim na área interna, que o biombo escondia. As vozes de procediam, me pareceu.

“... claro. Como não havia pensado nisto antes? “ Um lampejo, como uma premonição, percorreu-me o cérebro inquieto.

“Óbvio, um dia se encontrariam, era quase inevitável. Havia uma coisa em comum entre eles que, mais cedo ou mais tarde os aproximaria: o mar. ” Pensava enquanto me encaminhava ao jardim.

estavam eles. O sogro do pastor em com a mesma roupa cáqui de sempre. O velho japonês com o kimono de algodão, o yurata, completo, com obi (aquela faixa larga) e tudo. Por cima uma calça larga ( hakama ) e um casaco folgado ( haori ), fazia frio e sua saúde era delicada. Calçava aquelas meias com o dedão separado, tabi, mas não estava usando o geta, o tamanco de madeira. Calçava a zori, uma sandália de algodão. Bebiam aguardente japonesa (shochu), feita de cereais e tão forte quanto cachaça, que meu amigo também apreciava moderadamente. Desnecessário dizer que estavam visivelmente embriagados. Haviam feito uma fogueira que ardia com serenidade e um murmúrio semelhante ao da água aquecida para o chá – ruído que os índios chamam de i toro – ró, água sussurrante - irradiando seu calor generoso. A tarde caia em pródigas listras, a partir do horizonte, que iam do amarelo intenso até o violeta, passando por luminosos vermelho e laranja. Tão deslumbrante que desejei estar também embriagado e poder chorar sem sentir vergonha disso. Cumprimentei-os. Responderam-me com um gesto breve e simultaneamente, como que houvessem combinado. Sentei-me, um pouco distante, sobre uma das inúmeras pedras com musgo que ornamentavam o jardim. Não desejava perturbar-lhes aquela intimidade, mas também não queria perder esse momento, que adiante se confirmaria, impar.

Então, serenamente, o velho pescador - sogro do pastor- sentou-se próximo ao fogo. O sol poente espalhava , agora, cores possíveis e impossíveis por todo o horizonte visível. Tudo então tornou-se grave e solene como uma paisagem de Friedrich. Puxou para si um galho em que, em uma das pontas, crepitava uma brasa e nela acendeu seu cigarro de palha. Chegou-a ao velho japonês que por sua vez também acendeu seu cigarro. Apagou a brasa da ponta do galho esfregando-o contra o chão de terra. Sacou o canivete e principiou, lentamente, a cortar lascas do galho e a contar a História das sete cantigas para voar.

“ A primeira, num tom vermelho ( que aqui representa singeleza, exclusividade, unidade, harmonia, felicidade, calor, força, como o sol que nasce no oriente ) : cantiga de índio que perdeu sua taba, no peito esse incêndio não se apaga. Deixe o peixe, deixe o rio é um fio de inspiração.

As idéias na porta, entre as vítimas. Em momentos como este: paciência e serenidade olhando. Quando nascemos, quando da nossa geração:

“E a paisagem daí? Como é?”

O senhor, herói da terra, a faz mais bonita, metamorfose. Lições de um velho não têm preço.

A Segunda, num tom laranja ( que aqui representa força, presságio, felicidade, repetição, confirmar como verdadeiro ) : cantiga do boi incantado.

Ê boi incantado. Eu vim de longe, adonde a vista num pode alcançar. Viemos im dois, eu mais ventania, construir um mundo, eles continuavam aqui:

“Aqui estamos ...!”

A imagem luta, aventura e glória, com emoção. Entender os sonhos como uma árvore, para lembrar. Como um diário de amigo. Você nunca mais olhou as raízes, o melhor dela. Do pecado uma luz ao longe, onde está o poder.

A terceira, num tom dourado ( que aqui representa intensidade, ênfase, maior força, poder, tolerância, paciência obtida em experiência do passado ) : cantiga de campo.

A gente bem se sente. Recordar tua imagem, eu que nasci na floresta canto a temporada do senhor da luz, de mãos atadas, o guardião da tradição. Crianças e cobras, adorar por fora. Viagem, para entender os sonhadores, pela via das gelosias.

A quarta, num tom esmeralda (que aqui representa universalidade, quadrangulação, tranqüilidade, esperança, o crescimento da primavera ) : cantiga de roça.

Um cego que canta a fauna e a flora, se ela brotar bota uma flor no cabelo. Dignidade, confiança, aceitar as diferenças. No dia seguinte: trem da história, jardim de setembro.

“O que ficou para trás?”

“A fruta que se toca, as máscaras, o sorriso, sim! A noiva da floresta...”

“Desafio é a vida, experimente.”

“Mistério feminino, de perto: luz!”

A Quinta, num tom azul cerúleo / sustenido ( que aqui representa água, juventude, frescor ) : cantiga de ninar.

... Fui pro açude, fui pescar. Isso não fui não, tava com o namorado pra alegria e festa do meu coração.

Ninguém consegue ser o que não é, de mais puro, quando nos tornamos adultos. Paisagem: na fronteira ter a melhor e maior das selvas.

A Sexta, num tom azul anil / bemol ( que aqui representa imperfeição, deficiência, lamentação, mas também primavera, novo crescimento, esperança): cantiga de amigo.

Sete candeeiros, iluminavam a sala de amor, sete violeiros em clamores, sete cantadores, vão cantar louvando você.

Das árvores a identidade feminina, chão que os pés pisam: emoção. Da mesma maneira ela faz música de todas as distâncias, uma arte genealógica.

A sétima, num tom violeta ( que aqui representa inteireza, ciclo completo das coisas, realização, respeito ) : cantiga da procura.

Desde então tenho andado muitos caminhos mas não todos, ainda me busco no que seja semente da palavra, em todos me procuro de olhos abertos, amando no sonho vermelho a dança da resistência.

Herança, deleite do conhecimento. “

A noite que chegara de mansinho havia posto tudo em mistério. Uma longa tragada, como um ponto final, iluminou seu rosto. Ao terminar a história, o velho pescador – sogro do pastor – tinha nas mãos, esculpido, um pássaro.

Onde há muita ciência Deus não existe,

onde há toda ciência aí está Deus.”

Shoyo Daishi